As mulheres e o direito ao esporte
Mais um 8 de março chega e, novamente, as atenções se voltam, pelo menos durante um dia, para as mulheres que bravamente, combativamente, conquistam espaço em suas atividades.
Maurren Maggi Daiane dos Santos |
Katia Rubio (*)
Assim ocorre com as pesquisadoras, trabalhadoras, professoras, executivas, que com tenacidade e persistência romperam a barreira da discriminação, do preconceito e das muitas formas de assédio e marcaram seu tempo e seu grupo social realizando ações que promovem avanços consideráveis. No esporte não foi diferente. Constituído como um campo privilegiado de competição, demonstração de força e de resistência, o esporte desde seus primórdios foi considerado uma atividade essencialmente masculina.
As competições esportivas de forma geral, e os Jogos Olímpicos em particular, converteram-se em manifestações públicas de habilidades motoras e de poder, uma vez que às mulheres era impedido o acesso aos eventos, exceto as arquibancadas. Abrilhantar o espetáculo esportivo masculino era quase tão “natural” como o cuidado dos filhos ou a organização do lar, no entendimento dos detentores das instâncias de poder do esporte. E assim como ocorreu em outras frentes, as mulheres atletas buscaram ao longo do século XX, seu espaço, não sem enfrentamento, sem tensão ou sem disputas, cenário que perdura até a atualidade
Vale lembrar que a elas foi proibida a participação na primeira edição olímpica em 1896 e se hoje as mulheres protagonizam o espetáculo olímpico com o mesmo brilho que os homens é porque se entendeu, ao longo do século passado, que o esporte era direito, e não privilégio, de todos e não apenas de homens, ricos e poderosos. Para muitas atletas isso custou uma carreira gloriosa e marcas que seriam históricas. Mais do que qualquer outro grupo, as mulheres entenderam durante as últimas décadas que o esporte era um campo de luta política.
Foi o caso de Hilda von Puttkammer, esgrimista frequentadora do Club Athletico Paulistano, campeã brasileira em 1929, com apenas 17 anos. Em 1936 foi a primeira mulher sul-americana a competir em torneios olímpicos de esgrima e aos 23 anos participou dos Jogos Olímpicos de Berlim. Doze anos depois foi convidada a participar dos Jogos Olímpicos de Londres, em 1948, porém não pôde aceitar a convocação. Ciente da importância de uma presença feminina, liderou então um movimento para a realização de seletivas para que outra atleta fosse em seu lugar.
Essa atitude considerada uma rebelião lhe custou o banimento do esporte olímpico, mas foi acolhida por seu clube, onde assumiu o cargo de diretora honorária da modalidade. Há quem possa creditar essa situação ao momento histórico em que isso ocorreu, mas há ainda outros exemplos. As mulheres no esporte representam uma vanguarda na luta por direitos, muito embora muitas delas não tenham iniciado essa trajetória conscientemente. Elas desejam treinar, jogar, exercer uma profissão assim como tantas mulheres em outras frentes o fizeram. Mas, a elas coube a visibilidade proporcionada pelo espetáculo esportivo.
As primeiras medalhas olímpicas foram conquistadas em 1996, 76 anos após a primeira participação olímpica brasileira, 64 anos depois da participação da primeira mulher olímpica. Isso não foi acaso. Esse lapso temporal foi marcado por políticas públicas que impediram a participação feminina em modalidades como o futebol, as lutas, o halterofilismo em espaços públicos como clubes e escolas. A falta de acesso aos equipamentos esportivos e aos treinamentos levou muitas mulheres habilidosas à condição de atletas de segunda categoria, condição superada na década de 1980 quando o profissionalismo se afirmou como condição necessária para o desenvolvimento de homens e mulheres.
Eleonora de Mendonça faz parte de um grupo de atletas que lutou para que a maratona feminina entrasse para o programa olímpico. Foi a primeira brasileira a disputar essa prova e parte dessa condição foi favorecida pelo fato de morar nos Estados Unidos, onde as mulheres protagonizaram um grande enfrentamento participando das corridas de rua mesmo diante do veto imposto a elas. Em 1983 embora tivesse vencido a prova que lhe garantiu o índice olímpico, viu sua conquista ser desqualificada pela Confederação Brasileira de Atletismo que não aprovou a representação feminina na prova, retirando-lhe a chance de competir. Depois de uma batalha para o reconhecimento de seu índice, Eleonora participou da primeira prova de maratona feminina nos Jogos Olímpicos de Los Angeles em 1984.
Esses embates, como outros de viés político, são do conhecimento de poucos porque há uma máxima no Movimento Olímpico que afirma que esporte e política são atividades humanas situadas em campos distintos e distantes. E a participação feminina entra nesse campo. Causa espanto pensar que o judô feminino entrou para o programa olímpico nos Jogos de Barcelona, em 1992, que o salto com vara para mulheres se tornou olímpico apenas em Sydney em 2000 e o boxe em Londres-2012. Aí está uma dívida histórica a ser paga com juros e correção.
A entrada da televisão no cenário esportivo também contribuiu para uma deturpação do papel da mulher atleta na competição. Mais do que valorizar os feitos incomuns produzidos nas quadras, piscinas, pistas, tatames e ginásios, em função do alto nível de habilidade da atleta, o que se observa no comportamento da mídia é a reprodução de um discurso que se atém a uma avaliação da beleza, do corpo perfeito ou de uma gestualidade que foge ao padrão determinado para belas, recatadas e do lar. Aí está.
Competitivas, fortes, velozes, habilidosas elas se mostram tão heroínas e guerreiras como todas aquelas e aqueles que, em seus campos de competência, buscam provar suas competências de forma honesta e combativa. Que todas as mulheres atletas brasileiras sejam lembradas e celebradas em mais um 8 de março como mulheres que enfrentam não suas adversárias, marcas e tempos, mas principalmente o preconceito e a discriminação que ainda persiste não apenas no esporte, mas na sociedade como um todo.
(*) – É professora associada da EEFE da USP e membro do Comitê Olímpico Brasileiro (Jornal da USP).