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À capela

em Especial
segunda-feira, 16 de maio de 2016
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À capela

A renovação da liturgia proposta no Concílio Vaticano II, na década de 1960, simplificou as práticas da missa católica. A celebração passou a ser feita em língua nativa e não mais em latim

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Patrícia Lauretti/Jornal da Unicamp

Desse modo, a música na igreja também se modificou. No lugar do coro e da orquestra, entraram voluntários com seus poucos instrumentos, aptos a entoar canções de louvor que pudessem ser cantadas por todos. Foi um passo adiante na tentativa de popularização dos ritos da Igreja Católica, mas, para a tradição da música sacra, uma grande perda. A avaliação é do pesquisador Clayton Júnior Dias em sua tese de doutorado defendida no Departamento de Música do Instituto de Artes (IA) da Unicamp. No estudo, ele resgata a produção de música sacra em Campinas de 1772 a 1870.
Neste período, a Igreja Católica contava com um compositor contratado, chamado de “mestre de capela”, uma função nomeada pelo bispo da diocese. Para o posto de Campinas, o contratado trazia um sobrenome que mais tarde seria reconhecido em todo o mundo. Era Manoel José Gomes, pai do compositor de O Guarani, Carlos Gomes. Foi o início das contribuições da família Gomes para a música sacra campineira. A tese recupera as obras sacras de Maneco Músico, como era conhecido Manoel José Gomes, e os dois filhos José Pedro de Sant’Anna Gomes e Carlos Gomes.
Clayton estudou a música feita para a liturgia na paróquia Nossa Senhora da Conceição, que por três vezes mudou de endereço. Para entender a história da música, era preciso conhecer a fundo a história da formação da Igreja. E não bastavam as informações da Cúria Metropolitana de Campinas, muito embora a tese traga, de acordo com Clayton, o primeiro estudo completo de três livros do tombo da paróquia, que são disponibilizados de maneira integral na versão digital do trabalho. Clayton foi mais longe e acabou indo parar nos Arquivos Secretos do Vaticano, em Roma, Itália.

Imerso
Não é fácil fazer uma pesquisa nos documentos mais reservados da Igreja Católica. Além de Clayton, ele tem conhecimento de apenas um pesquisador de Campinas que também teve o acesso permitido. Foi a intimidade com a fé católica que abriu portas para o pesquisador. Ex-seminarista e atual diretor do Centro de Estudos de Música Sacra e Liturgia da Arquidiocese de Campinas (Cemulc), Clayton sempre esteve entre a religião e a ciência. Fez graduação, mestrado e doutorado em música na Unicamp. Cantor lírico e regente, no mestrado se ateve à obra sacra de José Maurício Nunes Garcia, padre e compositor da corte de Dom João VI.
Para entrar nos Arquivos Secretos, o pesquisador precisou de documentos de apresentação tanto da Arquidiocese de Campinas, como da Unicamp. Passou por uma entrevista e só então foi aprovado. Foram dois meses de pesquisas nos documentos e um começo com o pé direito. “Meu primeiro dia no arquivo foi encantador. Peguei a primeira pasta do Brasil, vinha numa caixa com vários lacinhos, selos… Abro e o primeiro documento que vejo é uma cópia da carta de Pero Vaz de Caminha”.
Nos Arquivos Secretos, Clayton descobriu como a Igreja determinava que a música deveria ser feita pelos mestres de capela e quem eram os músicos responsáveis. Também pode confirmar a nomeação de bispos, padres, e leis mais gerais da Igreja. De acordo com ele, onde está hoje o túmulo de Carlos Gomes havia a primeira ermida, uma capelinha para Nossa Senhora da Conceição, padroeira da cidade, que depois deu origem a outra igreja, onde fica atualmente a basílica de Nossa Senhora do Carmo. Com o crescimento da cidade e a necessidade de uma igreja maior, a paróquia mudaria novamente de endereço, indo para onde foi construída a atual Catedral Metropolitana.
Com a história do início da igreja em mãos, ainda faltava saber detalhes da música executada. Clayton recorreu ao Museu Carlos Gomes, em Campinas. “Encontrei todas as músicas do Manoel José Gomes e de seus filhos José Pedro de Sant’Anna Gomes e Carlos Gomes”. As composições foram divididas por gêneros da música sacra.

Família Gomes
Maneco Músico, nascido em Santana do Parnaíba, veio para a então Vila de São Carlos para ser o mestre de capela da freguesia de Nossa Senhora da Conceição. Suas atribuições eram cuidar da música que acompanhava as cerimônias religiosas, preparar e reger a orquestra e o coro para as apresentações na igreja, ensinar música, compor peças musicais sacras, copiar músicas de outros autores e ainda contratar e pagar os músicos. “Em Santana do Parnaíba, onde nasceu, Manoel José Gomes era um menino cantor de coro, criado na escola do padre José Pedroso de Morais Lara (1746-1808), que também era um compositor. Possivelmente teve contato com André da Silva Gomes, mestrede capela da Catedral da Sé de São Paulo, com quem aprendeu música e aprendeu a copiar”.

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A atividade de copista de Maneco Músico é exaltada pelos pesquisadores. “Na época só havia os manuscritos, portanto Manoel José Gomes preserva a música de André da Silva Gomes e também obras do padre José Maurício. Ele começa a trazer para a cidade a música mais refinada, a partir das cópias e de suas próprias composições”, ressalta. Maneco Músico foi o primeiro e único mestre de capela registrado em Campinas. A produção dele já havia sido catalogada pela professora da Unicamp Lenita Nogueira, porém não tinha sido feita ainda a separação por gêneros. Clayton classificou 62 peças sacras, divididas em antífonas, que são respostas cantadas aos salmos, missas, ladainhas, novenas, etc.
Além de contribuir para um refinamento nas composições e para a preservação de obras sacras, Maneco Gomes criou os filhos no ambiente da música. “José Pedro chegou a exercer a função do pai, informalmente. Ele compõe músicas para a inauguração da Catedral de Campinas e no dia da inauguração da igreja é quem vai reger a orquestra e o coro”. Profissionalmente, José Pedro era regente do Teatro São Carlos, em Campinas. Autor de várias composições, ele tem apenas sete peças sacras que Clayton conseguiu levantar.
O que mais chamou a atenção nas peças de José Pedro foi o “ar operístico” que ele dava às composições sacras numa época em que a música de ópera era proibida na Igreja, de acordo com o pesquisador. “Havia uma sonoridade profana em texto sacro e nessa época nós temos um documento papal que proíbe música de ópera dentro da Igreja”, observa.
O autor da tese afirma que pesquisou jornais da época que registravam apresentações de cantoras líricas na liturgia, com solos que “arrebatavam os fiéis”. Segundo os jornais, surpreendentemente havia inclusive o pedido de bis. “Pedir um bis dentro de uma missa?”, questiona Clayton. Parece algo impensável. Uma das cantoras líricas do período foi Maria Monteiro, a mesma que empresta o nome a uma rua do bairro Cambuí, em Campinas, conforme o pesquisador apurou.
Depois de Maneco Gomes e José Pedro, o pesquisador foi procurar as obras sacras de Carlos Gomes. Duas missas, a de São Sebastião composta em 1857, e a de Nossa Senhora da Conceição, de 1859, já são conhecidas. “A Missa de São Sebastião tem uma história curiosa porque não havia nenhuma capela dedicada ao santo em Campinas e nenhum devoto ou alguém da família que tenha nascido no dia de São Sebastião. Acredito que ele fez esta missa porque já almejava sua ida para o Rio de Janeiro, cujo padroeiro é São Sebastião”, conta o pesquisador. As duas missas já foram executadas pela Orquestra Sinfônica de Campinas.
Além das missas, Clayton levantou dois solos: um Laudamus Te e outro Gratias. “Tem ainda o Kyrie da missa perdida, que foi feito quando Carlos Gomes foi para Milão estudar música e precisou compor uma missa que não está em seus manuscritos, apenas esta parte foi encontrada pela filha dele que deu esse nome de Kyrie da Missa Perdida”. E também uma Ave Maria, já gravada várias vezes, duas antífonas e um Canto de Verônica, composição dedicada ao personagem bíblico comum do repertório sacro.
Música Viva
ju 656 p12 g temproarioNo mesmo púlpito onde Maria Monteiro possivelmente cantava, na Catedral de Campinas, a professora Adriana Kayama, docente do curso de Música da Unicamp, na última Sexta-Feira Santa, entoou o Canto de Verônica de José Pedro, em um trabalho de recriação das obras sacras da família Gomes proposto pela Arquidiocese de Campinas. Foi durante a reinauguração do Museu de Arte Sacra.
Como responsável do Centro de Estudos, Clayton procura dar continuidade ao trabalho que o arcebispo Dom Bruno Gamberini, morto em 2011, começou. “Em Campinas estamos tentando fazer um resgate. Dom Bruno era músico regente e entendia a beleza da música como forma de evangelização, então propôs a criação de um coro e do Centro”.
Desde 2007 já se formaram mais de 2 mil pessoas. “Temos um coro profissional da Arquidiocese (Coro da Arquidiocese de Campinas) e cantamos com orquestra em grandes solenidades”. Este ano o coro tem viagem prevista em outubro para Itália, Portugal e Roma. Devem cantar para o Papa Francisco.