Liel Miranda (*)
É difícil compreender que o Brasil seja um país racista. Afinal, para onde quer que olhemos, vemos pessoas pardas, pretas, com traços que confundem qualquer especialista em genética. Com tanta diversidade, é quase automático afirmar que, por aqui, a diversidade é totalmente aceita.
Porém, a realidade é outra. Vemos maiorias sendo tratadas como nichos e as cotas que visam a igualdade são vistas como ajudas demasiadas para grupos distintos. Nesse contexto, vale a pena falar de números: enquanto 56% da população é negra, menos de 10% dos cargos de liderança nas empresas são ocupados por elas.
Existem muitos preconceitos no Brasil, mas o racial é o mais evidente de todos. A marginalização da população negra, desde a época da escravização, atribuiu uma percepção de valor deturpada e estereotipada por piadas sobre cabelo, corpo, fala, entre outros. Além de serem a representação do preconceito, essas ações ferem a autoestima das pessoas negras.
Mas, o racismo vai além, colocando pretos e pardos em situação de crime, vulnerabilidade, desemprego, violência. Entre a minha percepção inicial e meu engajamento em ações antirracistas, precisei de muito letramento racial. Participei de cursos e aulas sobre o contexto histórico brasileiro — e a construção de narrativas que se perpetuam até hoje; e sobre o que é o racismo e os vieses inconscientes deixados em nossa sociedade.
Antes de estudar e saber mais sobre o tema, acreditava que essa questão deveria ser trabalhada pelo Governo ou pela esfera pública, mas depois compreendi que combater o racismo é papel de todas as pessoas desse país. Existem dois passos fundamentais para as pessoas não negras contribuírem no combate ao racismo: reconhecer que ele existe e tomar ações para combatê-lo. Eu sou um homem branco, CEO de uma empresa de presença global, e reconheço que só percebi a dimensão do racismo no Brasil há pouco tempo.
Essa percepção surgiu quando observei que as empresas não refletem, em seu quadro de funcionários, a realidade da sociedade brasileira. Em nenhuma delas encontrei 56% de pessoas negras — principalmente nas posições de liderança. Entendi que isso precisa mudar e, para que a mudança aconteça, precisamos da atuação deliberada das pessoas que estão na gestão. Precisamos reconhecer esse processo institucionalizado em nossa cultura e sociedade.
Desde que as pessoas negras escravizadas foram “libertas”, não houve um sistema que contribuísse para sua verdadeira inserção na sociedade. Assim, até hoje, os descendentes das pessoas escravizadas têm menos oportunidades no geral. É uma bola de neve: pretos e pardos são mais pobres, têm menor acesso à educação de qualidade e, por consequência, à ascensão social.
Logo, permanecem na pobreza, com poucos exemplos de pessoas que conseguem romper essa bolha e dar um novo futuro aos seus descendentes. Da mesma forma, concorrem em condições de desigualdade por vagas de emprego, perdendo representatividade no ambiente corporativo. Muitas vezes, são excluídos de processos seletivos que exigem formação em universidade X, fluência em outros idiomas, cursos de extensão e vários outros quesitos.
Outras vezes, conseguem um bom emprego e até conquistam posições de gerências, mas não vão além, até mesmo por falta de referências que os levem a querer galgar posições mais altas ou que os conduzam nesse processo. São preteridos em prol de alguém de perfil mais parecido com o dos gestores, em termos de formação, referência e vivências.
Esses acontecimentos excluem uma parcela significativa da população brasileira do desenvolvimento econômico e social e até mesmo do mercado produtor. Isso porque muito do que é desenvolvido em termos de produtos e serviços não chega a ser consumido por pessoas negras, que não têm poder financeiro para tal.
. Posicione-se contra o sistema – Quando comecei a pensar na questão racial, eu entendia que esse era um problema da esfera pública. Portanto, acreditava que era papel do governo encontrar uma solução. É óbvio que todos os agentes são responsáveis: governos e entidades públicas têm a obrigação de reverter esse quadro. Porém, as empresas e seus dirigentes também têm um papel a desempenhar e precisam chamar para si a responsabilidade de enfrentar o racismo estrutural.
Desse ponto de vista, precisamos reconhecer que a nossa missão diária é mudar essa realidade. No meu caso, essa missão de liderar a conscientização sobre a mudança de mentalidade e perspectiva começou dentro da empresa, por meio do MOVER (Movimento pela Equidade Racial). Juntos, os líderes de 47 empresas estão engajados em impactar a sociedade.
Acreditamos que, unindo forças, nossas ações alcancem um impacto maior na cadeia produtiva, abraçando não apenas nossos colaboradores, como também fornecedores e clientes, estendendo-se à sociedade como um todo. Nós assumimos esse papel. Acredito que todos nós, pessoas não negras, precisamos de muito letramento, pois é impossível para uma pessoa branca atuar deliberadamente contra o racismo por não vivenciar o que é ser uma pessoa negra no Brasil.
Aqui, a população negra enfrenta resquícios de nossas questões históricas nas situações mais cotidianas, como a falta de acesso às condições básicas. Meu papel, junto com o MOVER e todos os CEO´s que fazem parte do movimento, é incentivar a educação e propiciar aos meus colaboradores tanto a consciência dessa situação, quanto a oportunidade de crescerem em suas posições e virarem referência para as novas gerações.
E construir em conjunto com as pessoas que vivenciam na pele ou que entendam e possuam legitimidade de sugerir as melhores soluções. Nós usamos de nossa influência e poder da caneta para implementar as mudanças estruturais necessárias. Além de letramento, as ações afirmativas são fundamentais para acelerar esse processo. Por isso, desenvolvemos programas de liderança exclusivos para pessoas negras; oportunizamos o acesso a cursos de idioma, entre outras ações relevantes no ambiente corporativo.
Essa foi a maneira que encontramos de reduzir as desigualdades, já que estudos apontam que o Brasil levará 116 anos para atingir o equilíbrio de oportunidades entre brancos e negros. Porém, ainda é preciso ter mais ações afirmativas de combate à discriminação, proporcionando transformações culturais segmentadas pelo respeito e pela empatia.
(*) – É presidente do Mover (https://www.somosmover.org).