Estevao Seccatto (*)
Esta é uma das fórmulas existentes para transformação empresarial e aquisição/ integração de startups a incumbentes, uma dica aos leitores que são gestores de empresas, ou que são gestores de recursos (private ou public equities), para que acompanhem se a liderança das empresas dos seus portfólios está praticando esse tipo (ou algum tipo estruturado) de abordagem para transformações.
A recomendação é combinar esforços diferentes, mas acontecendo em paralelo. No contexto atual, não há mais a linearidade do começo, meio e fim. Empresas devem estar preparadas para avançar e recuar, a qualquer momento. O conceito VUCA (Volatility – volatilidade, Uncertainty – incerteza, Complexity – complexidade e Ambiguity – ambiguidade), desenvolvido pelo exército americano nos anos 90, descreve um mundo cercado por incertezas, constante mudanças, com questões complexas a serem resolvidas.
Neste contexto, a tomada de decisão e o planejamento estratégico das empresas tornou-se mais complicado, exigindo capacidade de adaptabilidade mais apurada dos gestores. A pandemia acelerou a evolução do mundo VUCA para o mundo BANI (Brittle – frágil, Anxious – ansioso, Nonlinear – não linear e Incomprehensible – Incompreensível). Este conceito que passou a ser usado para descrever o mundo pós-pandemia, foi desenvolvido pelo antropólogo, autor e futurista norte-americano Jamais Cascio.
Enquanto VUCA foi utilizado para nortear empresas em cenários de volatilidade, incerteza, complexidade e ambiguidade, a pandemia descortinou temas mais complexos e com contingências mais dramáticas, demonstrando a fragilidade da estratégia VUCA. Um percentual muito pequeno das empresas estava preparado para enfrentar o que aconteceu, no mundo todo. O conceito BANI busca endereçar contextos em que as condições são instáveis, e também caóticas! Em que os resultados são completamente imprevisíveis! Situações em que o desfecho não é simplesmente ambíguo, mas totalmente é incompreensível.
Para enfrentar essa não linearidade, empresas (empresários/ executivos/ profissionais) precisam ser flexíveis e possuir capacidades adaptativas, estando preparadas para cenários totalmente desconhecidos, tendo agilidade para realizar mudanças rápidas e profundas, com tomada de decisão just in time. Não é à toa que, neste cenário, e com os avanços tecnológicos e de comunicação, startups estejam surgindo para ocuparem espaços de empresas maduras.
Empresas incumbentes, líderes de mercado, sofrem ataques constantes em seus modelos de negócios, por empresas mais jovens, fundadas por recém-formados com tecnologia de ponta e sistemas financeiros e de negócios integrados inteligentes que tornam os serviços mais baratos, rápidos e confiáveis, e a experiencia dos usuários cada vez melhor. A fim de manterem suas posições, há alguns anos as empresas incumbentes vêm adquirindo ou fazendo parcerias com startups. São milhares de casos.
Num artigo da Harvard Business Review, os autores estudaram a abordagem de algumas empresas para transformações de mercado, e sugerem que as empresas líderes adotem a Abordagem de Dupla Transformação, como fez a Apple (computadores pessoais com designs e ipod/ itunes/ iphone), a Xerox (com copiadoras de baixo custo e serviços de gestão de documentos) e diversas outras.
A “Transformação de Dentro pra Fora” deve reposicionar o negócio principal, adaptando seu modelo de negócios atual ao mercado alterado. Aqui entra a mudança da cultura interna, da abolição das crenças limitadoras, do fim do “sempre fizemos assim”. Deve criar um negócio separado e disruptivo para desenvolver as inovações que se tornarão a fonte de crescimento futuro da organização. Aqui entra o corporate venture, com a aquisição ou parcerias com startups.
O objetivo da Transformação de Dentro pra Fora é encontrar a vantagem competitiva mais forte que seu modelo atual de negócios pode sustentar no mercado em crise. É a construção de um negócio separado, com sua própria fórmula de sucesso, equipe dedicada, processos distintos e cultura singular. A ideia é explorar a ruptura, sem ser penalizado pelos legados, requisitos de receita ou práticas do negócio principal.
Atuei em diversos casos de fusão de empresas, e minha primeira consideração é entender como será feita a conexão cultural das pessoas que serão integradas. Aliás, o fit cultural deveria ser analisado pari passu com o fit estratégico, antes da realização de um processo de fusão ou aquisição, especialmente de startups.
Fui líder global de fusões e aquisições de uma empresa de contact center (faturamento de R$ 10 bilhões, com ações listadas na bolsa de NY, controlada por um grande fundo de private equity e atuação em 14 países).
Minha função era identificar, negociar, adquirir e integrar concorrentes (em regiões estratégicas ou com clientes complementares), bem como empresas (startups ou consolidadas) com tecnologias disruptivas, que pudessem ser absorvidas pela minha empresa, e utilizada em nossos clientes. O fit cultural na integração de aquisições de concorrentes que já atuavam no mesmo segmento não foi tão desafiador, pois a cultura já era praticamente a mesma (respeitando-se apenas as particularidades regionais e alguns poucos ajustes).
O grande desafio estava em integrar empresas de tecnologia, ainda mais startups, numa corporação que tinha uma inércia muito grande, estruturas organizacionais rígidas, modelos de compensação tradicionais. Enquanto a área comercial da empresa de contact center era remunerada por vendas de horas de operadores, as startups tinham como DNA a entrega de eficiência aos clientes, com menos horas homem e mais softwares e robôs, com inteligência artificial.
Com isso, a equipe de vendas da empresa compradora, que tinha 400 clientes ativos ao redor do mundo, ofereceu enorme resistência em passar a vender serviços que, apesar de terem margens substancialmente maiores, apresentavam receitas menores. A alta gestão da empresa não estava conseguindo alinhar os interesses da área comercial, que boicotava as startups adquiridas (chegando a colocarem propostas distintas no mesmo cliente, competindo entre si).
Essa excrecência somente foi contornada quando a alta gestão propôs a mudança das métricas de remuneração para a área comercial, passando a pagar pela margem do projeto. Esse foi apenas um dos diversos desafios enfrentados. A chave para fazer as duas transformações funcionarem em paralelo é estabelecer um novo processo organizacional com “troca de capacidades”, por meio do qual os esforços paralelos podem compartilhar recursos selecionados, sem alterar a missão ou as operações de qualquer um deles.
A Abordagem de Dupla Transformação permite preservação do máximo valor possível do negócio atual, ao mesmo tempo que concede à empresa em crescimento o tempo de que ela precisa para se estabelecer. O que um esforço de transformação não pode realizar sozinho, os dois juntos têm uma chance muito maior de alcançarem.
Trata-se de uma estrutura que permite às duas organizações viverem juntas e compartilharem seus pontos fortes. Essa é a função da troca de recursos, que coordena os dois esforços de transformação para que cada um receba o que precisa e seja protegido da interferência do outro. A Abordagem de Dupla Transformação é feita em 5 passos:
- Estabelecer a liderança – as transformações devem ser lideradas por apenas algumas poucas pessoas importantes na organização, normalmente o CEO, o headda transformação da empresa incumbente e o líder do negócio disruptivo (startup na maior parte dos casos).
- Identificar os recursos compartilháveis – quais recursos a startup pode pedir emprestado da incumbente para obter uma vantagem competitiva sobre startups independentes. Brandingé o recurso compartilhado mais comum. O marketing, os dados de clientes, design também são frequentemente compartilhados. BackOffice administrativo/ financeiro e departamento jurídico também podem ser compartilhados.
- Criar de equipes compartilhadas – formar squadspara atender demandas específicas de uma ou outra empresa permite mais flexibilidade. Os grupos podem se formar ou se dissolver conforme necessário, com impacto mínimo nas operações regulares.
- Proteger as fronteiras – cada organização deve operar como se o futuro da empresa dependesse apenas dela. Isso significa impedir que os funcionários da empresa líder tentem se intrometer ou mesmo sabotar os novos negócios disruptivos. Também é importante evitar sangrar o negócio corrente para sustentar o novo negócio. A contabilidade de cada negócio deve ser mantida estritamente separada.
- Escalar e promover o novo negócio – se tudo correr bem, a empresa disruptiva deve receber uma parcela cada vez maior dos recursos e da atenção corporativa. Por mais difícil que seja realizar esse tipo de transformação, pode ser ainda mais difícil fazer com que os stakeholders externos a aceitem.
Portanto, a alta administração deve colocar o novo negócio nos holofotes ao promover a visão e as perspectivas da empresa incumbente. Caso contrário, os mercados e os clientes não verão a evolução da organização como um todo.
Deparar-se com empresas à beira de sofrerem ruptura está se tornando cada vez mais fácil. A pesquisa realizada e publicada na HBR mostra que a expectativa de vida corporativa está diminuindo: em 1958, o tempo médio que uma empresa permanecia no ranking S&P 500 era de 61 anos; em 1980, caiu para 25 anos. Hoje são apenas 18 anos.
Esses números sugerem que, à medida que as empresas crescem, elas precisam desenvolver uma maneira melhor de gerenciar as mudanças – um processo confiável que lhes permita mudar de marcha sem desmoronar, o que por enquanto ainda não está sendo praticado na grande maioria das empresas. O que vejo bastante é o fuzuê e a mídia gerada pela aquisição, frequentemente a múltiplos elevadíssimos, mas com pouco resultado efetivo. A estrutura para absorver uma ou múltiplas startups não é trivial. Vivi isso na pele.
A Abordagem de Dupla Transformação pode permitir que empresas não apenas sobrevivam aos próximos desafios disruptivos, mas também aproveitem as essas oportunidades de forma contínua para construir empresas novas que possam prosperar. A abordagem convencional, a integração forçada, irá gerar no curto prazo algum aumento no preço da ação (especulação alavancada na mídia/ expectativa irrealista – na maioria dos casos – de sinergias e crescimento futuro), consumo de caixa (ou equity swap), mas destruição de valor no longo prazo.
(*) – É professor de Turnaround na FIA Business School. Engenheiro naval (Poli/USP), extensão em economia (Harvard), finanças e marketing (FEA/USP), tecnologia (Singularty University), mestrando (University of Liverpool). Foi head global de M&A da Atento (NYSE) e reestruturador de empresas