Marco Antonio Spinelli (*)
Ouvi essa história na prédica de um monge budista brasileiro, Gustavo Pinto, na década de noventa. A vida parecia mais fácil nos anos noventa. A história, encantadora, é de um mestre Zen que estava para fazer alguma viagem, o que exigiria alguns dias de ausência. Ele reuniu seus seguidores e apontou para a sala de Meditação.
Disse que quando voltasse, essa sala deveria estar perfeita. Foi um rebuliço. Os monges passaram os dias em meticulosa limpeza de cada centímetro quadrado daquela local de meditação: cada grão de poeira foi removido e cada detalhe, polido. Ela estava toda brilhando e foi fechada antes da chegada do mestre, para se preservar a limpeza próxima da perfeição.
Quando o amado guia chegou, o monastério fervia de expectativa, se aquela sala estaria, ou não, perfeita. O mestre adentrou o recinto com cuidado e atenção, examinou a limpeza e a harmonia do local. Inesperadamente, saiu da sala e pegou um bocado de sujeira, de poeira, de insetos e de folhas e espalhou nos bancos e no piso brilhante. Houve quem fizesse menção de impedir aquele ato e limpar aquela sujeira. O mestre olhou para aqueles olhares atônitos e falou: “Agora está perfeito”.
Essa pequena história menciona a perfeição da imperfeição. Soa estranha para nossos ouvidos e para nossos conceitos de que a perfeição é a ausência do pecado, e o pecado é a sujeira, a falha, a contaminação do que deveria ser puro e sem mácula. Na minha opinião, o que o mestre estava demonstrando é o conceito impressionante da Aceitação da natureza imperfeita do mundo e da nossa experiência. Isso pode parecer óbvio, mas, em nosso tempo, em nosso século vinte e um, é um autêntico sacrilégio.
O filósofo Byun-Chul Han aponta que nossa sociedade cansada se apoia compulsivamente na ideia do positivo. Vivemos no mais-mais-mais, ou no melhor-melhor-melhor o tempo todo, bombardeados de metas e de ideias que nunca saem de nossos calcanhares.
Passamos o tempo todo tentando deixar a sala perfeita, para esquecer que a função da sala é estar aberta para as experiências, as introvisões, as meditações que lá vão acontecer.
Nossa era da positividade nos empurra para uma felicidade compulsória e obrigatória, ou seja, para um estado meio permanente de infelicidade e vazio. O vazio empurra a nossa fúria pelo mais, mais, mais: mais dinheiro, mais sucesso, mais visibilidade, mais likes, mais admiração, no teatro de Personas onde estamos afundados. Quando a perfeição vier, junto com ela, vem a tal da Felicidade. Certo? Não. Não está certo.
Outra história dos anos noventa: estava começando o meu consultório, e atendia uma paciente querida que trabalhava na casa de famosos terapeutas da época. Um deles me pediu para ajudá-la: tinha um quadro ansioso difícil, e uma de suas características era uma sensação meio permanente de vazio e de angústia sem razão aparente. Isso desembocava numa compulsão alimentar também severa.
Ela não conseguia aceitar o seu próprio corpo e alternava tentativas de dietas restritivas com episódios de excessos alimentares, num ciclo repetitivo e doloroso. A história que nunca esqueço foi ela que me contou: acho que ela estava numa festa, num churrasco e conversava com um dos familiares do aniversariante, que era um cadeirante.
A conversa foi para o lado da angústia que ela sentia diante da vida, e o homem retrucou: “Sabe, vocês se queixam da vida e ficam infelizes com isso e aquilo, mas eu que estou nessa cadeira de rodas e tinha tudo para ser infeliz, na verdade sou o mais feliz, sabe por que? Porque eu aceito a minha limitação. Aceito a minha dificuldade todo dia. Isso me deixa em paz”. Ela me contou essa conversa em lágrimas, e a sua terapia durou mais algum tempo. Espero que a história tenha tido o mesmo impacto nela que teve em mim.
Tenho uma boa e uma má notícia para quem está lendo esse texto: a má notícia é que somos todos cadeirantes existenciais. Temos, todos, nossas contusões, nossas pernas mancas e nossas limitações com as quais vamos mais conviver do que superar. Não adianta os gurus digitais gritarem que vão te transformar no Batman ou na Mulher Maravilha.
A autoaceitação é o superpoder que está sendo negado a todos presos na ciranda do “self improvement”, ou autoaperfeiçoamento. É errado tentar melhorar todo dia? É claro que não. Eu tento melhorar todo dia, como você, que está lendo. Mas entendo que Aceitação do outro e da vida torta e do mundo torto em que eu vivo é um superpoder.
Pense nas pessoas queridas, que tentamos mudar toda hora: como traria benefício Aceitar que a pessoa tem limitações, que a vida tem limitações e que é Dentro dessas limitações que vamos tentar viver. Essa é a boa notícia: a partir da Aceitação que as mudanças ocorrem.
Imagino que o rapaz cadeirante e o mestre Zen seriam grandes amigos. E eu adoraria ser amigo deles.
(*) – É médico, com mestrado em psiquiatria pela USP, psicoterapeuta de orientação junguiana e autor do livro “Stress o coelho de Alice tem sempre muita pressa”.