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Em São Paulo a tradição das capelas segue mantida

em Colunistas, Geraldo Nunes
sexta-feira, 09 de março de 2018
Reprodução da cabana de Tibiriça, onde os jesuítas se abrigaram no dia 25 de janeiro de 1554.

O povo brasileiro herdou dos portugueses a fé cristã e a veneração aos santos católicos construindo a eles inúmeras capelas. Algumas se perderam no tempo, outras sobreviveram

 

Reprodução da cabana de Tibiriça, onde os jesuítas se abrigaram no dia 25 de janeiro de 1554.A construção que deu origem à cidade de São Paulo, no Pátio do Colégio, em 1554, também era uma capela, não tinha ares de igreja. Construída com alicerces de terra socada e entrelaçada por grades de bambu e pau-a-pique, toda em taipa de mão e não em taipa de pilão, como dizem, a igrejinha fundada pelos jesuítas chefiados pelo padre Manuel da Nóbrega tinha cobertura de sapé e pouco maior que uma capela. Por isso durou poucos anos, sendo reconstruída seguidas vezes.

Mais tarde outros viajantes e os inúmeros bandeirantes também fundaram por conta própria algumas capelas que com o tempo se tornariam igrejas. Diz a lenda que um viajante em direção ao Rio de Janeiro, depois de pernoitar na colina onde se ergue a velha matriz do atual bairro da Penha, teria se esquecido ao partir de uma imagem de Nossa Senhora da Penha de França que carregava consigo. Retornou para buscá-la e lá passou mais uma noite. Antes de retomar a viagem decidiu construir uma capela por entender que o seu esquecimento estava ligado a um pedido da santa que queria ficar ali. Essa capela erguida pelo viajante, serviu de ponto de partida para a construção do bairro hoje existente.

Mais adiante, na mesma região, segue de pé em seu formato original, a capela de São Miguel construída em 1622, no lugar da originaria de 1560, também coberta por sapé. Do lado de fora desta capela há duas varandas, uma lateral e outra frontal. A construção, acredita-se, foi feita para dividir as classes sociais então existentes. No centro da capela assistiam a missa os portugueses e suas famílias e nos alpendres laterais ficavam os escravos e os indígenas obrigados a assistir aos ofícios aglomerados e em pé.

Igreja dos EnforcadosOs anos foram passando e a cidade foi crescendo, mas a tradição de se construir capelas continuou. O bairro da Liberdade, hoje reduto da população de traços orientais, era chamado no passado de Cruz das Almas, por ter abrigado em suas terras um cemitério para escravos e indigentes. Dentro desse cemitério o governo da província ordenou, em 1779, a construção de uma capela que permanece até os dias atuais em um beco na Rua dos Estudantes.

Chamada de Capela dos Aflitos, a antiga construção tem um aspecto tétrico, mas escapou da demolição em atendimento a um apelo da população do passado que pedia a veneração naquela capela das almas desses escravos que os antigos moradores consideravam penadas pelo fato deles morrerem quase sempre doentes e abandonados em completa aflição, sem nenhuma assistência, daí o nome.

Também na Liberdade existiu o pelourinho da cidade, ou seja, o local onde se fazia a exposição para compra e venda de escravos. Somente as famílias com maior poder aquisitivo podia comprá-los, o preço era elevado, algo em torno dos R$ 120 mil para os mais fortes, mais jovens e de melhor saúde e o preço ia baixando conforme a diminuição desses requisitos. Levava-se em conta o uso e a destinação daquele escravo para os trabalhos que se necessitava. Os homens eram bons para puxar a enxada, plantar, colher e construir. As mulheres faziam os trabalhos da casa, lavavam roupas e todo o serviço pesado, além de cuidar da horta e do pomar para as suas sinhás.

Capela de Nª Sª Aparecida, na Vila Diva, criada pela dupla sertaneja Tonico e Tinoco. A dentição era outro importante requisito de avaliação na hora de se comprar ou vender um escravo. Portanto, o Largo da Liberdade, onde acontece em todos os domingos a tradicional feira oriental, com produtos e comidas típicas do Japão, da China, da Coreia e Taiwan, foi na São Paulo de antigamente, um ponto de encontro para as negociações envolvendo escravos. Ali também se castigava publicamente os negros considerados preguiçosos, respondões ou indisciplinados e mais que isso, o atual Largo da Liberdade abrigava também uma forca destinada aos criminosos fossem eles brancos ou negros.

A pena de enforcamento só foi abolida no Brasil em 1874, mesmo assim o logradouro continuou sendo chamado de Largo da Forca até 1905, por causa de um acontecimento que comoveu a cidade quase um século e meio antes. Em 1775, aconteceu no Largo da Forca, o suplício e morte de um policial, cabo corneteiro da Legião dos Voluntários Reais, chamado Francisco José das Chagas, conhecido popularmente como cabo Chaguinhas.

Havia um movimento em que se reivindicava o pagamento de salários atrasados aos policiais, bem como uma igualdade de direitos entre soldados brasileiros e portugueses, mas não foi bem esse o motivo da briga que o cabo arranjou com o filho do intendente Martim Lopes Lobo de Saldanha, então governador da capitania, um político de baixa popularidade e de gênio violento. Chaguinhas feriu com uma faca o jovem filho do intendente e por este motivo, conforme as leis vigentes na época, acabou submetido a um Conselho de Guerra.

Capela dos AflitosO júri decidiu que o acusado não seria condenado à morte e sim à prisão perpétua, mas o intendente Martim Lopes não concordou com a decisão e anulou-a, mandando matar o corneteiro. Tal decisão repercutiu em toda a cidade e com data e horário marcados, o enforcamento levou muita gente ao pelourinho e cercou-se de fatos incríveis. Na hora da execução a corda arrebentou e o condenado em vez de morrer pendurado, caiu no chão e continuou vivo.

Substituída, a corda arrebentou de novo e uma outra corda ainda foi usada rompendo pela terceira vez. O povo presente então se manifestou apelando ao carrasco que aquilo era a vontade de Deus e que o cabo Chaguinhas merecia continuar vivendo. O carrasco inclemente, por sua vez, avistou um tropeiro que passava e pediu-lhe um laço de coro cru. Embora a praxe estabelecesse o uso de corda para o enforcamento, o condenado morreu pendurado em um laço de couro cru, causando revolta e comoção levando os moradores a erguer tempos depois uma capela à qual deram o nome Santa Cruz dos Enforcados.

No século XX houve a reconstrução e ampliada surgiu a Igreja dos Enforcados, que por tradição recebe diariamente centenas de fiéis que acendem velas por intenção de familiares mortos, vítimas da violência. Exige-se somente que as velas não sejam coloridas. Também na Capela dos Aflitos continuam sendo rezadas missas semanais todas as terças-feiras às 17h, por intenção das almas do antigo cemitério de indigentes entre as quais a do cabo corneteiro.

O bairro da Liberdade recebeu esse nome após a abolição da escravatura e os motivos para essa denominação são explicados pela própria história do lugar, bem como, acrescentamos, em clamor à libertação do cabo Chaguinhas, que teria acontecido se a voz do povo fosse ouvida naquela triste tarde de um já distante século XVIII.

Outro caso remete a 1875 onde um cidadão conhecido apenas por Zé do Boi, erigiu uma capela nas trilhas da mata onde hoje está a confluência das avenidas Água Fria e Nova Cantareira para homenagear São Sebastião. Zé do Boi dizia ter levantado o santuário para refúgio e meditação dos tropeiros que seguiam na direção de Bragança Paulista. Muitos anos depois, fiéis se empenhariam para a restauração da antiga capela, cujas imagens do altar, cálices e toalhas, além do sacrário foram entregues preservados à Cúria Metropolitana, mas a capela caindo aos pedaços não resistiu à força do tempo e veio abaixo por completo no limiar deste século XXI.

Outra história interessante sobre as capelas da cidade de São Paulo foi levantada pelo memorialista Douglas Nascimento, integrante do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (IHGSP), e publicada por ele no site São Paulo Antiga. Desse relato faz parte a mais famosa dupla sertaneja do século XX, Tonico e Tinoco.

Estreando no disco em 1944, os dois irmãos cantores já falecidos, trilharam uma jornada de muito sucesso pelo Brasil chegando ao ápice no final da década de 1950 e início dos anos 1960. Convidados, em 1961, para o filme “Lá no meu Sertão”, baseado na vida e obra do artista compositor Cornélio Pires, um dos integrantes da dupla sertaneja, o cantor Tonico, foi acometido de tubérculos e precisou após as filmagens ser internado em Campos do Jordão para fazer tratamento da doença, com sério risco de não se recuperar.

Como ambos eram devotos de Nossa Senhora Aparecida, fizeram a promessa de que caso Tonico se curasse da enfermidade, construiriam uma capela em retribuição. Poucos anos depois, totalmente refeito, Tonico ao lado do irmão Tinoco cumpriu a promessa fazendo erguer uma pequena igreja no bairro de Vila Diva. Não é preciso dizer que a inauguração atraiu uma multidão ao pacato bairro da zona leste paulistana.

Apesar deste fato curioso, ocorrido há mais de 50 anos, hoje são poucos os vizinhos que sabem a origem da capela. Apenas os moradores mais velhos ainda se lembram da dupla Coração do Brasil, como era chamada. Apesar de pequena e de traços simples, parecendo uma residência, a capela é um ponto de visitação e oração dos fiéis devotos de Nossa Senhora Aparecida. Localizada na rua Mirabela, a capelinha está conservada e nela são celebradas missas a cada segundo sábado do mês.

Há mais acontecimentos envolvendo capelas porque a fé segue existindo pela graça de Deus, apesar de tantas mudanças no mundo. A seu modo e a cada dia aparecem novos locais para refúgio e orações e assim novas lendas e outras estórias estarão sempre surgindo.

(*) Geraldo Nunes, jornalista e memorialista, integra a Academia Paulista de História. ([email protected])