No final de 2023, uma polêmica envolveu o principal concurso literário brasileiro, o Prêmio Jabuti. Após divulgar os semifinalistas de várias categorias, a Câmara Brasileira do Livro (CBL), comissão organizadora do evento, decidiu desclassificar a ilustração do livro Frankenstein da competição. A nova edição do romance de Mary Shelley foi editada pelo Clube de Literatura Clássica e estava concorrendo como melhor capa do ano. O motivo apontado pelos organizadores para a retirada da arte foi que o designer Vicente Pessôa utilizou a Inteligência Artificial (IA) para compor a imagem.
Se a Câmara Brasileira do Livro voltou atrás na indicação do semifinalista quer dizer que era proibido, pelas regras da premiação, um artista utilizar recursos tecnológicos em suas criações, certo? Errado. Não havia nada no regulamento do concurso que impedisse Pessôa de recorrer à IA. Então por que se optou pela desclassificação? A justificativa da CBL foi: “As regras da premiação estabelecem que casos não previstos no regulamento sejam deliberados pela curadoria, e a avaliação de obras que utilizam IA em sua produção não estava contemplada nessas regras”. E complementou dizendo que o uso da IA será ainda discutido para os próximos concursos “em razão dos princípios de defesa dos direitos autorais”.
O episódio causou polêmica por questionar a relevância artística de uma obra a partir do uso das ferramentas tecnológicas por seu autor. Além disso, nota-se a urgência para se debater os componentes éticos nesse campo. Se a capa tinha sido considerada bonita (e ela continua sendo!), o que diminui o seu valor o fato de ter sido criada com o auxílio da IA? E se um escritor brasileiro tivesse relatado à comissão organizadora do Prêmio Jabuti que seu livro, alçado à posição de semifinalista ou finalista, também fora criado com ajuda artificial, hein? Ele seria desclassificado também? E, por um acaso, a maneira como foi criado diminuiria seu valor literário?!
Essas questões são muito novas no universo da ética e da moral. Em agosto de 2023, uma juíza federal dos Estados Unidos recusou a alegação de que o artista que criou uma obra de arte utilizando a IA seja reconhecido como dono dos seus direitos autorais. A ilustração em questão se chama Uma Entrada Recente no Paraíso e mostra os trilhos de uma ferrovia passando no meio de uma floresta florida. De acordo com o parecer da juíza Beryl A. Howell do tribunal distrital de Washington D.C., “a lei de direitos autorais dos Estados Unidos protege apenas obras de criação humana”. Por isso a negativa à solicitação do artista no processo.
Tenho a impressão de que esse tipo de problema será cada vez mais comum enquanto a sociedade não definir as novas bases legais da criação artística. Será que amanhã ou depois de amanhã alguém irá questionar esse meu texto porque eu não o escrevi à mão nem em máquina de escrever, mas utilizei um aplicativo textual de computador?
Seria o Microsoft Word uma espécie de recurso tecnológico que corrompe meu direito autoral? Hoje pode parecer absurdo esse tipo de argumento, já que uso uma ferramenta habitual de produção de texto. Mas será que as novas ferramentas que serão agregadas ao nosso trabalho não serão alvo de preconceitos da sociedade e questionamentos em relação à originalidade logo mais?
Denise Debiasi é CEO da Bi2 Partners, reconhecida pela expertise e reputação de seus profissionais nas áreas de investigações globais e inteligência estratégica, governança e finanças corporativas, conformidade com leis nacionais e internacionais de combate à corrupção, antissuborno e antilavagem de dinheiro, arbitragem e suporte a litígios, entre outros serviços de primeira importância em mercados emergentes.