Edison Carlos Fernandes (*)
O que estamos passando com o COVID-19 me lembra a alegoria bíblica de Jonas, aquele profeta que passou dias na barriga de uma baleia (o que deve ter inspirado Pinóquio). Trata-se da história de uma profecia autorrealizada: ao atenderem aos apelos de Jonas para que se convertessem, caso contrário o Céu viria abaixo, os ninivitas evitaram o pior. Em plena Quaresma, vivemos situação bastante semelhante: se atendermos aos apelos das autoridades de saúde, evitaremos a propagação do novo corona vírus no Brasil. Porém, o efeito econômico da reclusão das pessoas é tão imprevisível quanto grave.
Assim como as pessoas naturais vão se recolher em suas casas, as pessoas jurídicas também reduziram suas atividades a praticamente zero. E, em uma economia de mercado como a brasileira, a pessoa jurídica representa os elos de uma rede estreitamente interligada. Por outras palavras: a pessoa jurídica é formada pela inter-relação dos “contratos” que celebra e cada um desses contratantes forma uma nova célula de atividade econômica que se junta a outros contratantes, nova células, e assim sucessivamente.
Em uma economia de mercado como a brasileira, a pessoa jurídica representa os elos de uma rede estreitamente interligada.
Por exemplo: já há notícias de desabastecimentos de matérias primas. Com isso, a indústria não produzirá e, portanto, não venderá produtos. Na sequência, o distribuidor desse produto tampouco terá o que vender. O mesmo acontece com o varejista e, por fim, com o consumidor final, que não terá o que comprar. Ainda que houvesse estoque, os trabalhadores estarão em casa durante o isolamento: não haverá produção e, nesses casos, o estoque de matéria prima acumulará (o que também é prejudicial ao desenvolvimento econômico), acontecendo o mesmo com as mercadorias nas prateleiras, em razão da diminuição dos consumidores dada a restrição do horário de funcionamento das lojas. Os bancos não receberão suas dívidas e seus juros, o que poderá provocar o vencimento antecipado, resultando em um efeito dominó imprevisível para as pessoas jurídicas e para o mercado. Os investidores e os sócios não receberão seus lucros – a reserva para contingência está aí para propiciar a retenção dos dividendos em momentos de tamanha incerteza. Finalmente, os governos não receberão seus impostos, comprometendo o atendimento às demandas da coletividade. Como se vê, o dia seguinte ao fim da pandemia do COVID-19 pode ser pior do que a fase aguda da doença que ele provoca.
No entanto, momentos de crise são mágicos e têm a capacidade de despertar a solidariedade do ser humano. Desta vez, a solidariedade não poderá ficar restrita ao relacionamento humano, terá que ser estendida à pessoa jurídica.
Também é certo que existem mecanismos jurídicos que protegem a execução do contrato, obrigando a observância da situação verificada no tempo da sua assinatura. Trata-se da condição rebus sic stantibus, assim expressa na lei comercial: “Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação” (artigo 317). Como se vê, tal mecanismo jurídico requer a atuação do Poder Judiciário. Acontece que submeter o efeito econômico do COVID-19 à apreciação de um juiz pode prolongar o tempo até uma decisão e, com isso, aumentar o risco da imprevisibilidade.
A solidariedade não poderá ficar restrita ao relacionamento humano, terá que ser estendida à pessoa jurídica
Neste ponto, volto à profecia de Jonas: ela só se (auto) realizou porque todos, desde o rei até o escravo, vestiram-se de sacos e se cobriram de cinzas, quer dizer, mudaram sua conduta para uma posição de humildade e de solidariedade. Essa é a postura que manterá os contratos e evitará a disputa judicial no momento imediatamente seguinte à debelação do COVID-19.
A solidariedade com a pessoa jurídica implica a renegociação simples e fluida dos contratos afetados pela pandemia. Isso inclui o fornecimento a prazo, a inadimplência do cliente, a cobrança de juros por dívida concedida pelos bancos. Inclui a não execução de cláusulas contratuais de proteção do crédito (convenants) e de garantias, a redução da jornada de trabalho e a concessão de férias coletivas. Inclui, ainda, a dedução fiscal dos prejuízos causados pela pandemia e prorrogação da data de vencimento dos tributos. Inclui, finalmente, a retenção de eventuais lucros, assegurando a perenidade da pessoa jurídica.
A pessoa jurídica não tem existência física; contudo, existe de maneira real e é sujeito de direito. Pode, então, ser também sujeito de solidariedade.
(*) É sócio fundador do FF Advogados, responsável pelas áreas de Direito Público e Direito contábil IFRS ([email protected])