Eduardo Marcial Ferreira Jardim (*)
Há quem diga que o sistema de impostos no Brasil é um verdadeiro manicômio tributário: confuso, burocratizado e difícil de compreender – afirmação que está correta, em parte. Mas afinal, a meia verdade é uma mentira? Vamos analisar.
De fato, está tudo errado sim em nossa legislação, que é confusa, confiscatória e inconstitucional, convindo lembrar que a carga tributária entre nós é superior a dos Estados Unidos e da Suíça. E o que é pior, tudo sem contrapartida, conforme estampa uma pesquisa realizada pelo IBPT, compreendendo 30 países, na qual o nosso país ocupou simplesmente o último lugar em termos de falta ou péssima qualidade do serviço público! Ocorre que, ao contrário do que dizem, a reforma tributária não vai mudar isso; ela propõe fazer alterações justamente naquilo que há de melhor e que poderia funcionar de forma adequada: a Constituição.
Pode causar surpresa o que vou escrever agora, mas na minha percepção (e também na opinião de festejados doutrinadores brasileiros, argentinos, uruguaios, portugueses e espanhóis), nosso sistema tributário descrito na Carta Magna é exemplar. Trata-se do melhor em toda a história do Direito – e não se trata de uma opinião. Tenho certeza disso a partir de uma sequência de fundamentos que vou detalhar abaixo.
Primeiro porque nenhuma Constituição de qualquer país do mundo dedica um capítulo inteiro à tributação, a exemplo da nossa. Mas isso não basta: no caso brasileiro, a Carta Magna pormenoriza e detalha os contornos dos tributos mais importantes, de forma a otimizar a segurança jurídica – o que garante segurança a quem paga a conta (o cidadão, ainda que diretamente ou indiretamente).
Para exemplificar, a nossa Constituição chega aos mínimos detalhes ao dizer que o imposto de renda será legislado no plano infraconstitucional, respeitando a universalidade, a generalidade e a progressividade. Isso quer dizer que quanto mais, paga mais, e que quanto menos paga menos.
Mas isso não funciona na prática. Basta ver que quem recebe R$ 5 mil no Brasil paga 27,5% de imposto de renda. E quem ganha centenas de milhões de reais em distribuição de lucros, fica isento de imposto e não precisa pagar absolutamente nada aos cofres públicos. Ou seja, há descumprimento da Constituição.
A nossa Constituição, por exemplo, limita o poder do Estado (no sentido amplo) ao estabelecer uma série de regras e de matrizes constitucionais que não podem ser desrespeitadas, mas o são. A lei passa ao largo de tudo, portanto, o problema não é Constituição – aliás ela é de uma clareza solar. E no caso da Reforma Tributária, a ideia é mudar justamente ela: a Constituição.
A propósito, o projeto de Reforma provém de uma emenda constitucional, dentro da qual propõe-se mudar toda a configuração do desenho constitucional. Cumpre sublinhar que as Emendas podem emendar aquilo que é preexistente e , portanto, sujeito à implementação. No caso tematizado, somente uma constituinte é que poderia revogar os pilares da tributação no Constituição e criar um novo sistema; Afora isso, cabe destacar que o nosso sistema tributário originário, exemplar, diga-se de passo, foi implantado por meio da Emenda 18/65 e sua estrutura é mantida até os dias de hoje. Com efeito, em sua essência ele limita o poder do Estado ao mesmo tempo que dá o poder para arrecadar o necessário para buscar a realização do bem comum.
Ainda, detalha com segurança e com clareza incrível os contornos ao dizer que o ICMS será seletivo, ou seja, quanto mais importante a mercadoria, menor o valor que deve pagar; e quanto mais supérflua, mais paga, o que não se vê na prática, a exemplo de combustíveis e energia elétrica sujeitos a alíquotas elevadas.
Nossa Texto Excelso proclama, por exemplo, o postulado da capacidade contributiva, estabelecendo que o legislador deveria ser obrigado a privilegiar os impostos sobre a renda e sobre a propriedade, porque são os que melhor espelham a capacidade contributiva, ou seja, a capacidade de pagar, pelo que o consumo deveria ser minimamente tributado.
Não obstante, diferentemente da determinação constitucional, a receita que o Brasil arrecada proveniente do consumo representa perto de 70% da tributação, o que é injusto porque significa que quem tem menos paga a conta do Estado. Para fins de comparação, a média dos países da OCDE se situam em torno de 35%sobre o consumo, sendo que no Japão a média é de 18% e nos Estados Unidos é 17%.
E isto posto, pergunto: o que sofrerá mudanças na Reforma Tributária? A legislação é inconstitucional? Não. Vão mudar a Constituição, o conjunto de regras no qual tudo está certo. Por isso, volto a dizer: sem dúvidas, a Reforma Tributária é uma falácia que, ao contrário de simplificar o sistema, vai torná-lo complexo e ininteligível, sem contar que vai acarretar aumento de carga tributária, aliás, já antecipada com o veto da tributação da folha de pagamento em vez do faturamento, afora outros projetos de tributação de grandes investimentos, jogos e assim avante.
(*) Doutor (1990) e Mestre (1987) em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor aposentado da Cátedra de Tributário na Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, onde lecionou Finanças Públicas e Tributação no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito Político e Econômico, para os cursos de Mestrado e Doutorado.