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Pela cultura da legalidade

em Artigos
terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

Elton Duarte Batalha (*)

O Brasil tem experimentado, nos últimos tempos, um rigoroso teste da solidez de suas instituições democráticas.

Nesse momento, deve-se refletir acerca da consolidação do Estado de direito nessa plaga, em especial no tocante à cultura de respeito às normas estatais. A observância da legislação é condição imprescindível para a criação de um ambiente caracterizado pela segurança jurídica. A lei, em sentido amplo, é a materialização da vontade popular por meio de seus representantes nas democracias modernas.

Independentemente da qualidade do corpo parlamentar eleito, a norma editada pelo Legislativo concretiza a manifestação volitiva da comunidade, espécie de pacto de convivência em relação a determinado assunto. Descumprir tal norma, portanto, significa desrespeito pelos outros indivíduos, causando a degeneração dos vínculos sociais.

A construção de um Estado de direito demanda sólida cultura de respeito à lei. Não se preconiza, com isso, a cultura do legalismo, que pretende resolver a miríade de problemas sociais por meio da mera edição de leis. Defende-se, com efeito, o fortalecimento da cultura da legalidade, que reconhece na lei uma referência válida para o convívio social.

Um dos inimigos da edificação do Estado de direito consiste na criação de legislação demasiadamente complexa, fomentando um ambiente de insegurança jurídica e propício ao descumprimento normativo, diante da dificuldade de identificação do caminho comportamental a seguir. Em tal situação, vislumbra-se a proliferação de meios alternativos para o atendimento das necessidades concretas, compondo o famigerado “jeitinho”, o qual não se justifica, mas é explicado com base em referido panorama.

A identificação do Brasil com o cenário descrito é clara. As áreas trabalhista e tributária, por exemplo, demonstram a falta de efetividade da normatização estatal. O passivo empresarial nesses dois campos é sinal robusto de que a respectiva regulação não está cumprindo sua função. São inúmeros os exemplos que corporificam a ausência da cultura da legalidade em território nacional. A reedição do programa Refis, propiciando aos inadimplentes a possibilidade de pagamento de suas obrigações em condições exageradamente vantajosas é situação que premia aqueles que desrespeitam a lei, com efeito deletério em relação aos cumpridores das normas.

A noção de que a burla ao regramento pode compensar corrompe o valor intrínseco do cumprimento do dispositivo legal: o respeito aos demais membros da comunidade. A inobservância das normas, seja no exercício de greves declaradas abusivas, seja quanto à lotação máxima das prisões, demonstra a ausência do sentido de comunidade no Brasil. Em um momento histórico de supervalorização das individualidades, demanda-se uma análise acurada quanto à importância da alteridade como fundamento do respeito às leis.

Ainda que a modernidade líquida, na terminologia de Zygmunt Bauman, seja caracterizada pela ausência de referências fixas, há que se observar detidamente o efeito nocivo de tal realidade sociológica no campo jurídico. O descumprimento de decisão judicial, estribada legitimamente na lei, é sintoma de séria deficiência na construção do Estado de direito em uma comunidade.

Soluções de compromisso são típicas do âmbito político; no campo jurídico, deve-se obedecer, conforme a lição de Niklas Luhmann, ao binômio lícito-ilícito, não à noção de adequação-inadequação. A confusão desses códigos tem o condão de tornar o sistema jurídico disfuncional, com reflexos profundos sobre a qualidade da democracia.

A operação Lava-jato, nesse sentido, cumpre importante papel no sentido de dar às normas a efetividade típica de sociedades mais desenvolvidas, atribuindo as devidas consequências negativas aos comportamentos desviantes do padrão legal. Além do funcionamento institucional, porém, é fundamental que os cidadãos estejam cônscios da relevância da cultura da legalidade na construção do Estado de direito, na esteira do pensamento de Niall Ferguson.

Somente assim, com a identificação do respeito à lei como o respeito ao outro, será possível construir um país mais justo, plasmado pela segurança jurídica.

(*) – É advogado e professor de Direito na Universidade Presbiteriana Mackenzie.