Elton Duarte Batalha (*)
Os acontecimentos na Venezuela trazem à tona diversas questões acerca do conceito de democracia, diferença entre legalidade e legitimidade, novo momento político nas Américas e a participação do governo Jair Bolsonaro no evento.
Há que se observar que o fenômeno político em vias de concretização naquele país evidencia a importância da ligação entre a vontade popular e a atuação das instituições para que um país seja, de fato democrático. Juan Guaidó, presidente da Assembleia Nacional e líder da oposição a Nicolás Maduro, atual chefe do Executivo venezuelano, autoproclamou-se presidente interino do país, fazendo juramento e prometendo realizar um governo de transição até que novas eleições sejam realizadas.
É importante notar que o futuro pleito é fundamental para banhar de legitimidade democrática o novo comando demandado pela população, submetida há anos às restrições decorrentes da crise econômica e política experimentada pela Venezuela. Sendo líder atual do Legislativo, reconhece-se que Guaidó apresenta certo grau de representatividade popular a ponto de liderar o processo de transição.
As últimas eleições venezuelanas foram consideradas ilegítimas por diversos países e pela Organização dos Estados Americanos (OEA). A mencionada falta de reconhecimento internacional decorre de fatores como a perseguição à oposição (prisão de Leopoldo López, por exemplo) e denúncias de fraude. Tendo tomado posse no início de janeiro de 2019, o mandato de Maduro encerra-se em 2025. É a continuidade do governo populista iniciado por Hugo Chávez em 1999, eleito no ano anterior.
O período mencionado, de cerca de 20 anos, materializa a crise do conceito de democracia no mundo contemporâneo. No poder, Chávez passou a subverter a noção democrática a partir da modificação substancial de instituições como o Legislativo e o Judiciário, órgãos que foram cooptados pelo Poder Executivo e transformaram a separação de poderes preconizada por Montesquieu em mero simulacro no território venezuelano.
Como asseverado por Levitsky e Ziblatt na obra ‘How democracies die’, “o retrocesso da democracia hoje começa nas urnas”. Os mesmos autores, aliás, em outra excelente passagem, afirmam que “os assassinos da democracia usam as próprias instituições da democracia – gradualmente, sutilmente e até mesmo legalmente – para matá-la”. As eleições, se corretamente realizadas, representam apenas o aspecto formal da democracia, cuja substância é preenchida pelo respeito aos direitos fundamentais dos cidadãos.
A discussão sobre o último pleito presidencial e a profunda crise social suportada pelos venezuelanos demonstram que a democracia há muito não existe verdadeiramente naquele país. A legalidade, que significa o cumprimento das regras do sistema jurídico, não pode ser sobreposta à legitimidade, entendida como o efetivo vínculo entre os representados e os respectivos representantes, sob pena de crise estrutural no sistema político.
Nesse sentido, importante observar a alegação presente na obra Ruptura, de Manuel Castells, para quem “a força e a estabilidade das instituições dependem de sua vigência na mente das pessoas” (p. 12). No pensamento dos venezuelanos, um outro mundo é possível e desejável. O reconhecimento do governo interino de Guaidó pelos Estados Unidos, pela OEA e por diversos outros países, entre os quais o Brasil, é de fundamental relevância para a tentativa de redemocratização da Venezuela.
Para Bolsonaro, aliás, representa uma vitória importante da nova visão política esposada por seu governo, fortalecendo o papel do Brasil como líder regional e membro influente do Grupo de Lima. Há sensível simbolismo nesse evento político na Venezuela: é o marco definitivo de que novos ventos sopram sobre as Américas.
(*) – É advogado e professor de Direito na Universidade Presbiteriana Mackenzie, e doutor em Direito pela Universidade de São Paulo.