Edison Carlos Fernandes (*) e Felipe Galli dos Santos Panelli (**)
Para caracterizar o dolo, não importa o motivo, e sim a intenção.
O ano de 2019 se encerrou com uma decisão que amedrontou diversos empresários brasileiros, que se viram na posição de responder uma futura ação penal pelo inadimplemento de ICMS declarado e não pago, em razão do entendimento do STF, consignado nos autos do RHC nº 163.334, criminalizando a pratica dolosa de tal conduta.
Cumpre esclarecer, inicialmente, até para aclarar o leitor, o raciocínio adotado pelo STF: o ICMS é um imposto que incide sobre a circulação jurídica de mercadoria, assim, basicamente, ao vender determinada mercadoria, será necessário recolher o respectivo imposto aos cofres públicos. No entanto, o valor do imposto a ser recolhido já é embutido, pelo próprio vendedor (empresário), no preço da mercadoria, que é repassado ao consumidor final.
logo, apesar da lei determinar como contribuinte do imposto o empresário (contribuinte de direito), quem realmente paga o ICMS é o consumidor (contribuinte de fato). Nesse contexto, como o consumidor é quem paga o ICMS, os respectivos valores somente são repassados pelo empresário ao Estado. De acordo com o raciocínio acima, se o vendedor não repassar os respectivos valores, estará, na verdade, se apropriando de algo que não lhe pertence, conduta tipificada penalmente como apropriação indébita tributária (artigo 2º, inciso II da Lei nº 8.137, de 1990).
Embora o STF tenha criminalizado a conduta, os Ministros reiteraram, por diversas vezes, que não pretendem criminalizar o mero inadimplemento (não pagamento), mas a prática dolosa de tal conduto, um dos exemplos citados pelo Ministro Roberto Barroso, Relator do caso, foi a figura do devedor contumaz (inadimplência reiterada). Contudo, na prática, é extremamente complexo de se apurar o dolo propriamente dito, sobretudo nos exatos termos do STF, uma vez que o dolo e o motivo não se confundem.
Há diversas contradições lógicas no julgamento do caso, uma delas é em relação ao dolo; em síntese, o dolo é a intenção do agente de cometer tal conduta, o empresário ao não repassar o ICMS aos cofres públicos, por dificuldades financeiras (situação em que o STF não quer criminalizar), está agindo com dolo, pois ele, de fato, não tem a intenção de pagar – o empresário sabe que deve, mas não vai pagar –, já o motivo pelo não pagamento é a ausência de condição financeira.
Para caracterizar o dolo, não importa o motivo, e sim a intenção. Por analogia, pouco importa se um ladrão furtar alguém para alimentar a sua família, a intenção dele, independente do motivo – mais nobre que seja –, ainda era furtar, assim, no direito penal, sua conduta ainda é tipificada como furto. Outra contradição lógica é classificar, em determinadas situações, o crime de apropriação indébita como sendo habitual. Ou seja, o não pagamento uma vez – ou até mais vezes – do imposto é permitido, mas a pratica reiterada é crime.
Não há sentido, pois, além de não comprovar o dolo nos termos do STF, vide o exemplo de uma empresa em recuperação judicial – a empresa não quer obter “beneficio” econômico com o inadimplência do imposto, apenas não tem condições financeiras de pagá-lo –, não se sabe o exato momento da consumação do crime, o que abre margem para arbitrariedade.
Apesar de o entendimento do STF ainda ser nebuloso – até por ser extremamente recente – sobre o assunto, principalmente em relação à apuração do dolo, fato é que o inadimplemento do ICMS declarado é crime. Porém, talvez tal entendimento não se sustente por muito tempo, já que há dois projetos em tramite no Congresso com o escopo de alterar a redação do artigo 2º da Lei nº 8.137 para deixar explícito que o mero inadimplemento, sem qualquer ato fraudulento, de tributo devidamente declarado não é crime.
(*) – É sócio fundador do FF Advogados, responsável pelas áreas de Direito Público e Direito contábil IFRS ([email protected]);
(**) – Contencioso tributário e procedimento administrativo tributário
([email protected]).