Elton Duarte Batalha (*)
Há cento e noventa anos, em 7 de novembro de 1831, foi promulgada a chamada Lei Feijó, documento ao qual se reputa a origem da expressão “lei para inglês ver”.
Apesar da distância temporal do mencionado diploma legal, a atualidade do que ele representa em termos de desrespeito às normas jurídicas ainda é marcante, permitindo reflexão sobre a cultura nacional. A lei editada em 1831, traz em seu nome a referência a Diogo Feijó, regente no período posterior à abdicação do trono por Dom Pedro I.
Por meio de tal regramento, buscava-se atender à pressão inglesa no sentido de proibir a importação de mão de obra escravizada para o território nacional, prevendo a punição dos envolvidos no chamado tráfico negreiro e a concessão de prêmio às pessoas que denunciassem tal prática.
É nesse ponto que a Lei Feijó reflete a estrutura do Estado e da sociedade brasileira de modo cristalino: por trás do legalismo, existe um profundo desprezo pela legalidade.
A mera criação de norma jurídica não tem o condão, por si só, de alterar a vivência social caso não seja efetivamente implementada, devidamente fiscalizada e socialmente prestigiada. O respeito à lei (legalidade), de parca ocorrência no Brasil, não pode ser confundido com a prática de criar leis em profusão como potencial solução às mazelas nacionais (legalismo), característica presente na história deste país.
Observando o cenário brasileiro dos últimos anos, em governos de tendência mais à direita ou à esquerda, é possível notar que o atributo que marcou a Lei Feijó está presente em 2021: o desapego à determinação legal. Nos mais diversos campos jurídicos (trabalhista, penal, financeiro etc.), há não somente o descumprimento de regras, mas também um certo culto a tal inobservância, sempre escudada em supostas boas intenções.
Atualmente, a discussão incide sobre o respeito ao chamado teto de gastos. Importa salientar que a discussão sobre o cumprimento das leis não é mera questiúncula jurídica ou sociológica, pois a mencionada postura social implica efeitos relevantes sobre aspectos práticos da vida, como o desenvolvimento econômico do país.
Quanto mais efetiva for a observância das regras de direito, maior será a estabilidade das instituições e, por conseguinte, mais saudável será o ambiente para investimento nacional e estrangeiro, ensejando potencial crescimento da economia, com geração de riqueza para toda a comunidade. A ligação entre a cultura, o campo jurídico e a área econômica são evidentes, contendo a questão da edificação e respeito às instituições como elemento comum.
É sintomático que o Brasil seja um antigo “país do futuro”, pleno de possibilidades e vazio de realizações, uma vez que as estruturas sociais e estatais não passam por verdadeira alteração apta a criar um ambiente de segurança jurídica marcado por instituições condizentes com as necessidades da população.
O panorama delineado permite que, passados quase dois séculos da edição da Lei Feijó, a expressão continue tão atual: “lei para inglês ver” – e para brasileiro lamentar.
(*) – É professor de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, advogado e doutor em Direito pela USP.