Livro analisa educação clandestina no gueto de Varsóvia
Em 1º de setembro de 1939, a Alemanha nazista invadia a Polônia, movimento que iniciou a Segunda Guerra Mundial. Tão logo tomaram o país, os alemães puseram em funcionamento uma série de medidas de exclusão aos judeus, parte de sua campanha racista pela supremacia ariana
“Policiais” judeus em uma barricada na entrada do gueto de Varsóvia. Fevereiro de 1941. |
Luiz Prado/Jornal da USP
Uso obrigatório da estrela de davi como forma de identificação, impedimento de trabalhar, confisco de bens, fechamento do comércio, restrições de culto e confinamento em guetos foram os primeiros capítulos do Holocausto, o extermínio em massa do povo judeu.
A capital da Polônia, Varsóvia, era a segunda maior cidade judaica do mundo quando da invasão alemã, com 360 mil judeus, atrás apenas de Nova York. Nela, o bairro judeu foi posto em quarentena e depois fechado por um muro de 3 metros de altura, coberto de arame farpado. Atrás de suas paredes, a fome, a doença e a miséria tornaram-se parte do cotidiano. Para resgatar a dignidade humana e suportar as privações, atividades culturais e educativas foram estimuladas e praticadas no gueto, mesmo que proibidas.
O ensino das crianças nessas condições é o objeto de estudo de Nanci Nascimento de Souza, que acaba de publicar o livro ‘Gueto de Varsóvia: educação clandestina e resistência’, fruto de sua dissertação de mestrado apresentada na Faculdade de Filosofia da USP, pela Editora Humanitas. Na obra, a autora entende o trabalho educacional clandestino realizado no gueto como uma estratégia de oposição à violência totalitária. “Foi o meio encontrado pelos educadores e as crianças envolvidas de transcender a si mesmos e a situação histórica de exclusão e repressão pelo regime nazista, visando à morte do sujeito. A educação clandestina velou pela humanidade da criança e buscou assegurar seus direitos mais básicos, quando ainda não era conferido à criança nenhum direito”.
As escolas para crianças judias foram fechadas pelos nazistas em dezembro de 1939, como parte de um processo que ainda proibiria casas de rezas, livrarias e bibliotecas judaicas e lojas de artigos religiosos. Mesmo a presença de judeus em bibliotecas públicas polonesas foi vetada a partir de 1940. O passo seguinte foi o confinamento e a exclusão dos judeus. “Os nazistas se aproveitaram de espaços junto aos bairros habitados por uma maioria judaica para transformá-los em guetos”, explica a autora. “Em 16 de novembro de 1940, os alemães fecharam hermeticamente o gueto de Varsóvia, o maior gueto da Europa.”
Nanci dedica a primeira parte do livro ao esboço da vida judaica na Polônia do período entre guerras (1918-1939), com destaque para a educação. Em seguida, faz um apanhado histórico da segregação sofrida pelos judeus, indo dos guetos renascentistas até o século 20. No terceiro capítulo, discorre sobre algumas organizações e instituições judaicas que procuraram prestar assistência social, cultural e educacional no gueto, destacando seu caráter de resistência. É no último e mais longo capítulo que a autora se aprofunda no tema central da obra. Nanci estuda especificamente o ensino clandestino oferecido a crianças abaixo de 15 anos dentro do gueto de Varsóvia.
Para isso, analisa documentos relacionados a duas instituições, a Central de Associações de Proteção aos Órfãos e Crianças Judias Abandonadas (Centos) e a Organização Central das Escolas Judaicas (TsYHsO), que organizavam escolas em refeitórios que a autora chama de “cantinas-escola”.
Os documentos apresentados no livro incluem instruções das organizações de ensino e relatos de educadores. Através deles, a autora identifica a preocupação em despertar o amor e a devoção pela língua e cultura iídiche e a perspectiva de preparar os jovens para a preservação da identidade e da cultura judaica na vida pós-gueto. São os testemunhos das próprias crianças, contudo, que trazem os momentos mais impactantes do trabalho. A autora mesmo reconhece que “neles tivemos acesso não somente aos fatos, mas a sentimentos, emoções, fortalezas e angústias de uma geração entre muros. Esses escritos romperam o silêncio provocado pelo terror nazista. Neles encontramos a voz da criança”.
Um desses relatos vem de Esterl Honikshtok. “No primeiro dia, semear feijão. Semeamos desta maneira: nós (…) recobrimos com uma gaze, colocamos os grãos na gaze (…) algodão. Pegamos vasos de flores com terra e semeamos cebolas, aveia, sementes de maçã etc. Uma semana mais tarde, começaram a crescer pequenas raízes e duas pequenas folhas. Em seguida, a professora pegou potes de vidro de feijão e ervilhas que já haviam germinado, e os transplantou para vasos de flor. A cada dia, as crianças os regavam. Houve uma bela florada. Hoje as janelas estão lindamente decoradas”.
Outro exemplo do vigor dos testemunhos é de Zeliki Krishtal. “Nós cantamos todos os dias. A professora conta e lê literatura iídiche. O que nós gostamos mais é Sholem-Aleykhem quando ele descreve as felizes crianças judias. Comemos em mesas, a refeição acontece com calma. A professora dá suplemento para as crianças e as deixam repetir. Quando as crianças terminam de comer, voltam para casa. Quando eu termino de comer, não tenho vontade de voltar para casa, porque não é tão alegre para mim no quintal como é na escola. Já é noite, eu me lavo e vou me deitar. Eu espero que a noite passe o mais rápido possível, para voltar de novo (à) escola”.
“É difícil conseguir livros didáticos; sua venda está oficialmente proibida. Tomamos notas das aulas de nossos professores e as aprendemos de memória. Apesar dessas extraordinárias dificuldades, nosso ginásio outorgou verdadeiros diplomas de ensino médio. Os exames e as cerimônias de graduação tiveram lugar no apartamento de nosso diretor, o doutor Michael Brandstetter. Foi de tarde; todas as cortinas estavam baixas e se colocou um guarda de estudantes frente à casa. Os alunos foram examinados separadamente pelos professores, sentados em volta de uma mesa coberta com um pano verde. Todos, sem exceção, passaram no exame. Os diplomas não foram emitidos, como em outros tempos pelo Ministério de Educação, senão pela direção do gymnasium ilegal. Estavam impressos em folhas ordinárias de papel e levavam as assinaturas de todos os professores. Com lágrimas nos olhos, o diretor pronunciou seu discurso de costume, dirigido aos novos graduados, assim como a toda a juventude da Polônia, especialmente a juventude judaica, que deixam a escola sem nenhuma perspectiva para o futuro, salvo em tornar-se escravo de um campo de trabalho nazista”. (Testemunho de Mary Berg, sobrevivente do gueto de Varsóvia).