Bravo Maestro, ou Maestro Bravo?
Diz a tradição que ao término de uma sinfonia o público, caso tenha apreciado, pode aplaudir de pé e exclamar “Bravo”! Assim, o regente da orquestra se sentirá enaltecido e em retribuição aos aplausos se voltará à plateia agradecendo. Caso as palmas continuem pode o maestro brindar a todos com um bis para alegria geral
O maestro paulistano Diogo Pacheco fez isso várias vezes. Nascido no Belenzinho, a 8 de novembro de 1925 segue ativo. Ao longo de sua carreira ganhou notoriedade pela capacidade que sempre teve de organizar apresentações alternativas voltadas a um público nem sempre acostumado a ouvir música erudita, ou de nem sempre comparecer às salas de concerto.
Conheci o maestro Diogo Pacheco nos corredores da Rádio Eldorado, onde ele comparecia uma vez por semana para gravar seu programa. Primeiro ele se dirigia aos microfones e gravava sua apresentação com os comentários atinentes aos assuntos da semana, a obra dos grandes mestres da música e as sinfonias que seriam apresentadas. Comentava também particularidades instrumentais e rítmicas, solos de piano e assim por diante daquela audição. Geralmente ele não programava uma sinfonia completa, preferia separar um trecho, ressaltando o que havia de interessante naquela parte da música, deixando assim a apresentação mais ágil e dinâmica.
Ao término, com as falas já gravadas, o maestro entregava ao técnico de som, os discos de vinil selecionados para aquele programa para que se fizesse a mixagem, ou seja, a união entre o que foi falado e as músicas, resultando disso, a montagem final do programa. Nesse tempo a que me refiro, final da década de 1980, até mesmo os CDs – Compact Disc – ainda estavam começando no mercado sem muita aceitação. Usava-se na montagem de um programa de rádio, dois gravadores marca Ampex – profissionais – com enormes fitas de rolo.
No gravador número um ficava a fita com as falas do maestro e no gravador número dois essas mesmas falas seriam inseridas nas passagens entre uma música e outra contidas nos discos de vinil. A mixagem acontecia em tempo real, ou seja, o técnico de som colocava o disco para rodar e tinha que passar tudo para o gravador porque não havia downloads. O resultado final originava o programa que iria ao ar. Depois de tudo preparado, esse mesmo técnico de som entregava a fita pronta nas mãos do programador que a deixava selecionada em uma estante com o dia e o horário em que o programa iria ao ar. Esse era um trabalho rotineiro que acontecia diariamente em todas as emissoras de rádio e na Eldorado não era diferente.
Ocorre que música erudita geralmente é comprida e nos antigos long-plays uma sinfonia ocupava sozinha quase um lado inteiro de um disco de vinil. Não havia a divisão por faixas entre uma música e outra como se verifica nos discos de música popular. Por causa disso, separar um trecho dentro de um disco de faixa corrida era algo difícil. De vez em quando acontecia de algum técnico de som, na hora da montagem, deixar a música tocando mais tempo ou menos tempo do que deveria.
Vamos dar um exemplo: no programa o maestro anunciava, digamos, a Sonata nº 29 de Beethoven em Si bemol Maior, Opus 106 e comentava que naquele seguimento ocorreria determinado solo instrumental ou alguma outra passagem interessante. Para o técnico de som, entretanto, por mais atento que ele fosse, não havia um ponto de corte entre a saída da música e a entrada da voz do maestro.
O programa de Diogo Pacheco ia ao ar pela Rádio Eldorado FM nos domingos à noite e ele, quando estava em casa, ligava o rádio para ouvir. Quando notava algum tipo de equívoco se dirigia no dia seguinte à emissora e, “bravo”, reclamava diretamente com o chefe dos operadores: “Onde já se viu não colocar justamente a o trecho da sinfonia que eu havia recomendado”? Questionava. Assim que Diogo ia embora, o funcionário era chamado até a sala do chefe para dar suas explicações. “O disco é de faixa corrida”! Justificava o técnico.
Nunca soube de reclamações da parte dos ouvintes, ao contrário, as telefonistas da emissora anotavam só elogios e pedidos de bis para as audições do programa do maestro Diogo Pacheco. Na verdade, os tais equívocos não passavam de detalhes muitos dos quais só perceptíveis aos ouvidos de um regente de orquestra.
No entanto, para resolver o problema alguém teve a ideia de dar ao maestro apresentador um pedaço de giz, desses de escola. Com ele, após gravar suas falas, o maestro se dirigia ao técnico de som e mostrava as marquinhas que fazia no disco dizendo: “Na hora de montar o programa grave o que está no disco no trecho entre essa marca de giz e a outra, entendeu”? Isto deixava claro ao operador, quais seriam os pontos de entrada e saída da música.
A partir daí tudo começou a dar certo e Diogo Pacheco, que sempre foi uma pessoa muito alegre voltou a sorrir também para os técnicos ou operadores de som e estes, por sua vez, deram graças a Deus. Estavam com seus empregos salvos por um pedacinho de giz que faziam questão de guardar exclusivamente para isso.
Simpático com seus cabelos brancos como os de Ludwig Van Beethoven, o maestro nascido no Belenzinho fez também programas na televisão e chegou a gravar dois comerciais do Opala, um carro que ele dizia ser, de fato, o da sua preferência. Os anúncios estão no Youtube para quem quiser conferir. Neles, o maestro dirige e canta ao som de uma sinfonia fazendo ao volante movimentos de regência, exibindo as qualidades de um dos modelos mais caros e luxuosos da linha 1987, o “ Chevrolet Diplomata com câmbio automático”.
Entrevistei o maestro Diogo Pacheco no programa ‘São Paulo de Todos os Tempos’ que ia ao ar pela extinta Rádio Eldorado AM. Nessa oportunidade perguntei qual era a grande lembrança que tinha do Belenzinho dos seus tempos de menino. Diogo me disse que sua maior alegria era acordar cedo aos domingos e ir correndo até a paróquia São José do Belém só para tocar o sino da igreja.
“Naquele tempo, os sinos eram acionados por longas cordas penduradas entre as torres as portas de entrada. Os sinos ficavam badalando entre sete e meia e oito da manhã para chamar os fiéis à missa e o menino que chegasse primeiro à igreja era o escolhido para tocar o sino. Eu fazia questão de acordar bem cedo para ser o primeiro e me lembro que eu era tão pequeno que ao fazer força para tocar o sino, chegava a me dependurar entre as cordas tirando os dois pés do chão”, contou. Depois, Diogo Pacheco complementou: “Essa é a minha mais afetiva lembrança dos tempos de menino no Belenzinho, bairro ao qual ainda tenho muito carinho”.
Ele se tornou conhecido por ter sido um dos regentes da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo e pelos programas de música erudita na Rádio Eldorado e nas TVs Cultura e Globo. Atualmente apresenta o programa semanal ‘Grande Concerto’, na Rádio Cultura FM de São Paulo.
“Bravo”! Diogo Pacheco.
(*) Geraldo Nunes, jornalista e memorialista, integra a Academia Paulista de História. ([email protected]).