Renata Herani (*)
A “Odisseia” é uma obra atribuída ao poeta épico grego Homero, por volta de 700 a.C., que narra as aventuras de Ulisses (ou Odisseu, em grego) durante sua jornada de volta para casa após a Guerra de Troia. No percurso, ele enfrenta uma difícil escolha entre dois perigos extremos: Cila, um monstro de muitas cabeças que devorava marinheiros; e Caribdis, um redemoinho gigante que engolia navios.
Qualquer decisão poderia levar a consequências desastrosas. Ulisses opta por passar mais perto de Cila, mesmo sabendo que perderia alguns de seus homens, pois passar perto de Caribdis significava o risco de perder o navio inteiro.
Ao fazer essa escolha, ele perde seis de seus homens – um por cada cabeça do monstro. Mas o navio continua sua jornada e, ao final, Ulisses retorna à ilha Natal de Ítaca. Essa escolha trágica, mas calculada, demonstra a liderança de Ulisses e sua habilidade em tomar decisões difíceis para minimizar o dano total, mesmo quando todas as opções são arriscadas, refletindo sobre as escolhas éticas e morais que muitas vezes enfrentamos.
Assim como o mar da Odisseia, a Inteligência Artificial (IA) é uma realidade nova e complexa, de um impacto ainda imensurável. Por isso, as discussões são tão delicadas e precisam ser balizadas por princípios éticos, para que a inovação não seja travada pelos riscos.
A criação de realidades totalmente inverídicas, como a reprodução de uma determinada voz em outro idioma ou a edição de vídeos de pessoas que jamais foram gravadas, de fato, são armas poderosas proporcionadas pela inteligência artificial, capazes de causar estragos difíceis de reverter.
Simular a cena de um crime, difundir um posicionamento político falso ou correr o risco de exterminar centenas de milhares de empregos são algumas das preocupações globais que permeiam essa discussão, ainda bem distante de consensos para garantir o uso devido da tecnologia disponível.
A adoção massiva de recursos de IA no dia a dia das pessoas também traz uma série de outras questões relacionadas à privacidade e segurança. Por essas razões, é fundamental que tenhamos uma boa regulamentação, capaz de mitigar riscos e garantir que inteligência artificial beneficie a todos, e não apenas a alguns.
O Brasil é um país continental e diversificado que, apesar de toda sua complexidade social e política, tem um ambiente regulatório democrático consolidado. As leis são fundamentais para promover o crescimento dos diversos setores econômicos com a devida segurança jurídica.
Nos últimos anos, vivemos um processo de digitalização acelerado, e importantes projetos foram aprovados para balizar essa transformação, como o Marco Civil da Internet, a Lei de Acesso à Informação e a Lei Geral de Proteção de Dados, só para citar alguns exemplos.
No caso da inteligência artificial, tramitam vários projetos de lei na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, propondo algum nível de regulamentação do tema. A principal discussão está na Comissão Temporária sobre Inteligência Artificial do Senado, com o Projeto de Lei 2338/23, sob relatoria do senador Eduardo Gomes (PL/TO), que já promoveu uma série de audiências públicas e ainda tem previsão de realizar outras para aprofundamento do debate.
Em recente adiamento da votação no Senado, Gomes destacou que este é um assunto global, discutido em uma “rua” de 7 bilhões de habitantes, em referência às questões centrais que envolvem o tema e são semelhantes no mundo inteiro, como as novas relações de trabalho impulsionadas pela IA.
Produzir uma regulamentação moderna, eficaz e simples é o grande objetivo do relator, que precisará compilar uma ampla gama de sugestões, além de promover a sintonia necessária entre Senado, Câmara e Poder Executivo para entregar ao Brasil uma regulamentação adequada sobre o uso da inteligência artificial.
A União Europeia acordou a primeira lei abrangente sobre IA em 2023. Regras específicas começaram a ser adotadas na China, e houve audiências no Senado e ordens executivas nos Estados Unidos.
Quanto mais detalhada se propõe a ser uma regulamentação, maior tende a ser a sua complexidade. O desafio do legislador é encontrar o equilíbrio adequado entre os fundamentos, princípios e aplicações práticas, definindo algumas situações concretas. Não é simples, nem trivial. O debate amplo, como tem sido, é imprescindível.
Que a ética seja o norte principal de toda essa construção.
(*) – É cientista política e diretora de Relações Institucionais e Comunicação da Tecnobank (https://www.tecnobank.com.br).