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A ilusão do “Novo Mercado”

em Opinião
terça-feira, 17 de outubro de 2023

Ricardo Schweitzer (*)

A Caixa de Pandora do mercado financeiro foi aberta em 2023. Problemas entre controladores e investidores minoritários sempre existiram, infelizmente. Mas, particularmente neste ano, ficou nítido como a governança nas empresas de capital aberto ainda é fraca e insuficiente para fazer resguardar os interesses os pequenos. Inúmeros episódios recentes carregam indícios de favorecimento de determinados acionistas em detrimento de outros.

Temos casos como o da Eletromídia (ELMD3), onde foi feita uma alteração-relâmpago do estatuto para beneficiar a Globo, permitindo que o conglomerado de mídia aumentasse sua participação na empresa a toque de caixa, sem que os demais acionistas sequer soubessem os termos da transação anteriormente firmada com o acionista controlador. A medida privou investidores minoritários de vender os seus papéis com prêmio em relação ao preço de mercado.

Houve também o embate entre minoritários e a holding imobiliária Nexpe (NEXP3), antiga BR Brokers. Pouco antes de pedir recuperação judicial, a empresa levantou empréstimo junto a seu acionista controlador, o fundo Cerberus Capital Management, dando como garantia as quotas de participação na única empresa saudável do grupo – a Credimorar. Enquanto o controlador reservou a empresa saudável para si, os minoritários sofreram fortes perdas ao se deparar um uma empresa esvaziada.

Para completar o leque de absurdos, temos o caso da Mitre (MTRE3), que recentemente queimou sua reputação no mercado em apenas um dia, aprovando quase na marra em seu Conselho a aquisição de imóveis de propriedade do acionista controlador cujas características fogem completamente do escopo de atuação da empresa.

Não podemos esquecer também do polêmico caso da GetNinjas (NINJ3): dois anos após ter feito IPO, o CEO e fundador decidiu devolver quase todo o caixa aos acionistas por meio de uma redução de capital. Mas não se engane: o próprio CEO seria francamente beneficiado com a operação. Após ter embolsado pouco mais de R$40 milhões entre ações vendidas no IPO e a remuneração por seu cargo executivo desde então, Eduardo L’Hotellier, levaria mais R$42 milhões para casa. Dinheiro injetado na empresa por acionistas minoritários, que para ele esperavam melhores destinações do que o bolso do fundador.

Além de serem casos de deixar a qualquer um boquiaberto, todos esses episódios têm algo extremamente desconfortável em comum: Eletromídia, Nexpe, Mitre e GetNinjas são todas empresas originalmente listadas no famigerado Novo Mercado da B3.

Falácias para encobrir preguiça

Parece uma contradição que tantos escândalos e abusos de minoritários tenham sido gestados em um grupo tão seleto da bolsa. A realidade é que, embora o Novo Mercado represente avanços na governança corporativa, é um erro acreditar que estas medidas se traduzem em um nirvana corporativo onde não existem mais problemas.

Faço uma analogia com o cinto de segurança: no passado o seu uso era facultativo, atualmente é obrigatório usar o cinto, o airbag e o freio ABS, mas continuam existindo acidentes e vítimas. Da mesma forma, mesmo com as exigências do Novo Mercado, minoritários continuarão sendo lesados.

Outra falácia do mercado é o famoso tag along – direito que o acionista minoritário tem de vender sua participação pelo mesmo preço e condições que o acionista controlador em um cenário de alienação de controle da companhia. Na teoria, muito bonito, mas na prática as já usaram de diversas artimanhas para burlar tal obrigatoriedade.

Na mesma direção vai a turma que acredita que “sócio é ON” – ou seja, que a detenção de ações ordinárias garante alguma proteção adicional em relação às preferenciais. Pois bem, meus amigos: todos os casos que trago nesse artigo envolvem empresas cuja base acionária é exclusivamente ON.

No final do dia, todos esses jargões apenas encobrem uma enorme preguiça de fazer o trabalho de verdade: averiguar a real eficácia das estruturas de governança das empresas e o histórico de conduta dos envolvidos. E ressalto: esse trabalho mitiga riscos, mas também não representa garantia de absolutamente nada.

A culpa também é sua

Ter uma transformação significativa na governança das empresas listadas requer um esforço conjunto da sociedade, da CVM, dos agentes de mercado e investidores. Mas isso não exclui a possibilidade de que os minoritários tenham certas posturas para fugir de situações abusivas, onde o elo mais fraco é sempre o mais prejudicado.

A discussão de governança passa em primeiro lugar por acompanhar atentamente a condução dos negócios da companhia investida – seja lendo as decisões das assembleias ou monitorando as atas de reuniões do conselho de administração e fiscal. Poucos investidores têm o hábito de acompanhar com profundidade as empresas, se limitando a ser informados pelo que sai na mídia, analistas e “influenciadores”.

A presença em assembleia geral de acionistas, quando é permitida a participação online e o voto à distância, também é muito relevante para fazer valer os seus direitos como minoritários. Esse mecanismo existe, mas infelizmente a adesão ainda é baixa – e, em sua maioria, as companhias não fazem questão de promover a prática.

Acionista bom é acionista quieto. Só se lembra dele quando é necessário quórum para levar a frente alguma medida mais ousada.

Um exemplo recente foi a assembleia geral de acionistas da Wiz (WIZS3) para reduzir o payout obrigatório de 50% para 25%. A reunião foi pautada para ocorrer apenas no formato presencial, em Brasília, e não teve quórum. Pergunto-me: uma reunião para determinar o payout de uma empresa não deveria ser de interesse de todos os minoritários e ter a possibilidade de voto a distância?

Situações como esta levaram a CVM a abrir uma consulta pública sobre as normas para assembleias de acionistas. A tentativa é aprimorar os mecanismos de participação e votação a distância. Entre as principais alterações propostas estão a obrigatoriedade de divulgar o boletim de voto à distância para todas as assembleias de acionistas, gerais, especiais, ordinárias e extraordinárias.

Há ainda um outro instrumento que é pouco utilizado pelos minoritários, o Pedido Público de Procuração (PPP), que é uma alternativa adicional para investidores que desejam exercer seu direito de voto em assembleias e não podem estar presentes nem online e nem virtualmente. Eles têm a possibilidade de nomear um representante legal por meio de uma procuração.

Em suma investidor, há muitos meios para poder exercer o seu direito de sócio minoritário de uma companhia. A união de esforços poderia melhorar de alguma forma essa triste realidade que vemos hoje no mercado.

Confraria dos conselheiros independentes

No caso da Mitre, que mencionei anteriormente, ganhou bastante destaque o posicionamento público do conselheiro Burkhard Otto Cordes. Ele colocou-se com firmeza frente à ausência de materiais de suporte e justificativas coerentes para a compra dos imóveis em Trancoso. Burkhard estava exercendo o seu papel, defendendo os interesses da empresa – nem dos controladores, nem dos minoritários.

Infelizmente, hoje temos poucos Burkhards no mercado. A profissão de conselheiro independente também tem sido sucateada e desvirtuada no capital aberto nos últimos anos. Como o próprio nome sugere, um conselheiro independente deveria ser alguém que não tem vínculos com a empresa, ou com seus acionistas de referência, e que pode contribuir com a governança da companhia, com base na sua experiência no setor ou vivência corporativa. Na prática, o cargo foi banalizado, dando espaço a figurões que tem feito da cadeira de “independente” um excelente negócio.

Tem conselheiro independente que integra tantos Conselhos de Administração, de segmentos tão diversos, que fica difícil imaginar que possa efetivamente contribuir de forma construtiva com todas essas companhias. E muitos acabam inclusive se encontrando em diferentes colegiados – dá até pra fazer uma confraria!

Outro problema nesta profissão é a escolha de medalhões para o cargo de conselheiros, que parecem mais emprestar seu nome para dar legitimidade ao órgão deliberativo, mas efetivamente não podem contribuir com a governança da companhia. O passado não me deixa mentir, já tivemos até famosos em vários Conselhos de Administração de empresas brasileiras. Em certa época, a moda era chamar ex-ministros do STF. Muitos atuaram nas infames empresas do “Grupo X”. O resultado é história.

Sobre os ministros recentemente indicados para o conselho de uma fundição catarinense, acho que nem preciso comentar. A piada já vem pronta.

O mercado precisa de conselheiros realmente comprometidos com as empresas. Qualificados. Que sejam alçados ao cargo para efetivamente fazer diferença, e não somente recolher honorários, tirar o corpo fora em situações difíceis e renunciar quando há algo podre no radar.

Se cada um de nós fizesse a sua parte, talvez vivenciássemos um mercado de capitais mais justo e onde houvesse respeito.

Mas sabemos perfeitamente que isso não vai acontecer tão cedo. Então, enquanto mudanças não acontecem por milagre, mantenha-se de olho aberto e confira se a carteira continua no bolso.

(*) Analista independente.