“O mundo ideal seria a gente conseguir aprovar um imposto de valor agregado único, reunindo impostos sobre o consumo federais, estaduais e municipais. O mundo real, o mais factível, num primeiro momento, pode ser a unificação dos tributos do nível federal, o que já ajuda”. A avaliação das possibilidades da reforma tributária que tramita na Câmara e no Senado, é da advogada Ana Claudia Utumi, em entrevista ao jornal “Empresas e Negócios” (JEN).
Luiz Henrique Romagnoli/JEN
Doutorada pela USP, é integrante de várias entidades nacionais e da Internacional Fiscal Association, com mais de 25 anos de experiência em tributação, ela é defensora da proposta de um imposto único sobre o consumo.
“O Brasil é um caso único em que a tributação sobre consumo foi fatiada em três pedaços: o federal com PIS, COFINS e IPI; o estadual com o ICMS e o municipal, com o ISS”. E lamenta as previsões de dificuldade para unificar todos os tributos: “Ideal é que a se aproveitasse esta oportunidade pra fazer uma limpa nesta complexidade toda”.
“Não faltam exemplos de empresas que fazem o primeiro investimento no Brasil, mas no momento de expandir, vão para outros países”, afirma Utumi ao rebater os defensores de uma reforma com subsídios para os mais pobres: “Em lugar nenhum do mundo se faz justiça fiscal com imposto sobre consumo. Tributar conforme a capacidade do sujeito é graduação do imposto de renda. É relativo à renda, não ao consumo”.
A advogada defende que não há como reduzir impostos neste momento, em que o país vai para o sétimo ano de déficit fiscal. Mas também não há espaço para aumentar a massa de impostos, “porque as pessoas e empresas estão no limite”.
JEN: Quais os pontos positivos do debate sobre reforma tributária no Congresso?
Gosto bastante da proposta da unificação de vários impostos em um, o imposto sobre valor agregado, ou IBS – Imposto sobre Bens e Serviços- no projeto da Câmara. Porque joga vários tributos pra dentro de um único e aproxima o Brasil da legislação tributária de mais de 100 países.
JEN: Como resolver os conflitos de interesse da federação, estados e municípios, que já travaram outras reformas tributárias?
O projeto do IBS é simples porque joga toda a tributação para o estado onde ocorrer o consumo. Isso reduz a guerra fiscal. Porque quem vai cobrar o imposto não é o estado onde esteja localizado o produtor, mas o estado onde esteja o consumidor. É possível que São Paulo, o estado com maior número de consumidores, saia beneficiado. Mas São Paulo também vende para outros estados.
Difícil dizer quem sai ganhando quem sai perdendo. Há uma premissa de que ninguém perca arrecadação. Para cada estado, cada município é garantido receba pelo menos o que já recebe hoje. Aí com maior desenvolvimento econômico a coisa pode ser balanceada. É um jogo de xadrez. Não é matemática fácil. De qualquer maneira ter um único imposto sobre valor agregado e não ter de ficar vendo a legislação de PIS, COFINS, IPI, 27 legislações de ICMS, praticamente 5.600 legislações de ISS, você tem um ganho muito forte.
JEN: A reforma pode melhorar o ambiente dos negócios?
Nós somos muito demandantes de capital estrangeiro, então precisamos melhorar o ambiente para atrair o investimento estrangeiro de qualidade, de longo prazo. Não o investimento especulativo que a gente tinha mais fortemente até há algum tempo, pela taxa de juros que era uma das maiores do mundo. Então reduziu muito o investimento especulativo e não está entrando o investimento novo.
JEN: E os outros impostos não precisam ser mudados? Qual a importância deles no total?
Na atual matriz brasileira, a tributação sobre consumo significa quase de 70% da carga total. Quando mexo no consumo, mexo no coração do sistema. Do ponto de vista de arrecadação é o mais relevante.
JEN: Como enfrentar a sonegação?
É chocante dizer, mas a sonegação é socialmente aceitável no Brasil. Diariamente vemos gente dizendo que prefere ficar com o dinheiro a dar para os políticos corruptos. E na verdade a sonegação é tão danosa quanto a corrupção, porque uma limpa o dinheiro que entrou e outra não deixa o dinheiro entrar. De um jeito ou de outro você tem um estado quebrado.
Por aqui não faltam lojistas que tem várias empresas no Simples Nacional e ele já não deveria caber no simples. Porque uma loja é da tia com a avó, outra do cachorro com o papagaio… Como ele tem a sensação de que ninguém fiscaliza, a evasão fiscal acaba premiada pela falta de fiscalização mais pulverizada. Em vários países foram adotadas políticas de tolerância zero contra a sonegação.
JEN: Na outra ponta as grandes empresas aproveitam as variações e brechas e acabam postergando ou se livrando de pagamentos. Como enfrentar?
Se a nossa legislação fosse mais simples com certeza teríamos menos brechas para as empresas. A legislação brasileira tem tanta exceção que dá margem a todo tipo de discussão. Além da exceção você tem a utilização de termos dúbios indefinidos em que cabe uma discussão. Trabalhar nestas nuances é o dia a dia das empresas em matéria tributária.
Este ponto das empresas especialmente multinacionais que conseguem ter um tratamento mais benéficos do que os simples mortais é objeto de preocupação da própria OCDE, que tem desde 2013 tem capitaneado um projeto, “Base erosion and profit shifting” b(BEPS), basicamente “erosão da base de cálculo e transferência de lucro para outros países”.
O projeto estimula os países a verificarem nas suas legislações onde há economias tributarias. Hoje há mais de 100 países engajados nestes projetos, entre eles o Brasil, revisitando as legislações. O OCDE entende que uma empresa que usa uma brecha na lei que o concorrente não estava enxergando, tem uma vantagem competitiva indevida porque a tributação deve ser neutra para todos.
JEN: Existem soluções locais para lidar com o problema?
Eu defendo uma maior comunicação entre fisco e contribuinte para resolver questões de interpretação. Em vários países existe a prática do “ruling”. O contribuinte antes de implementar um procedimento discute com a Receita esta interpretação e assim evita briga administrativa e judicial. Ter uma dialética maior da empresa com o fisco ajudaria. Isso é positivo e muito pouco feito no Brasil.
Aqui o mercado inteiro tem uma interpretação em determinado sentido, que é adotado por uma empresa que chega ao Brasil, para, depois de alguns anos, o Fisco, com uma interpretação completamente diferente, a autuar. Ai a empresa tem que passar anos a fio discutindo se é o tom de cinza é claro, escuro ou médio.