Sempre que Ruy Barbosa pedia a palavra, os senadores já esperavam uma fala longa e inflamada. O discurso foi exatamente assim numa sessão em 1911. Antes de iniciar, enquanto ainda se ajeitava na tribuna, o senador da Bahia deve ter ouvido algum adversário suspirando de tédio em alto volume só para provocá-lo. Ruy não deixou barato
Ricardo Westin/Ag. Senado/Arquivo S
— Senhores, estamos em uma época em que passa como irritante o fiel cumprimento dos mais sagrados e imperiosos deveres da honra política pelos representantes do povo — reagiu ele, abrindo um furioso discurso, que se estenderia por quatro horas, contra os desmandos do presidente Hermes da Fonseca.
O nascimento de Ruy Barbosa, um dos personagens mais marcantes da história nacional, completa 170 anos nesta terça-feira (5). Foi ele, com sua oratória arrebatadora, quem pela primeira vez mostrou de forma didática aos brasileiros que é preciso exigir democracia e moralidade na política.
Ruy viveu entre as últimas décadas dos Império e as primeiras da República. Nessa época, os rumos do Brasil eram ditados pelos caciques políticos conforme seus interesses particulares. Embora o voto existisse, o povo não apitava nada e achava isso normal. Da tribuna do Palácio Conde dos Arcos, a primeira sede do Senado, no Rio de Janeiro, Ruy tentava convencer a sociedade de que essa democracia de fachada era inaceitável.
O Arquivo do Senado, em Brasília, guarda todos os discursos que Ruy pronunciou como senador da República, incluindo suas “aulas” de política. Até então, nenhum parlamentar havia tido a ousadia de botar o dedo na cara dos poderosos do país com tanta veemência.
Em 1893, ele explicou que o governo, ainda que respaldado pela maioria, jamais teria o direito de esmagar a minoria. Era a época em que o marechal Floriano Peixoto, numa espécie de ditadura militar, perseguia de forma implacável seus adversários.
— Aprecio devidamente o valor das maiorias neste sistema de governo. Conheço-lhes a significação nas democracias modernas. Curvo-me à sua autoridade constitucional. As maiorias são a força. As maiorias são a autoridade. As maiorias são a lei. Mas, em assunto político, as maiorias não são, muitas vezes, mais do que a paixão e a injustiça. Não confere a nenhum sistema de governo o direito despótico e absoluto das maiorias. Ele é, muitas vezes, ocasional e precário. Reduzida a uma minoria, reduzida mesmo a uma unidade, uma opinião pode valer mais do que os decretos ditatoriais das maiorias.
Para Ruy Barbosa, o Supremo Tribunal Federal merecia toda a proteção por ser a única instituição capaz de conter os eventuais interesses políticos do presidente da República e do Congresso Nacional. Ele, como senador constituinte em 1890 e 1891, foi decisivo para que o STF ganhasse a incumbência, válida até hoje, de atuar como guardião da Constituição.
— O Supremo Tribunal Federal é essa instituição criada sobretudo para servir de dique, de barreira e de freio às maiorias parlamentares, para conter as expansões do espírito do partido. É essa força que diz: “Até aqui permite a Constituição que vás; daqui não permite a Constituição que passes”. Eis para que se criou o Supremo Tribunal Federal, que não tem empregos para dar, não tem tesouros para comprar dedicações, não tem soldados para invadir estados, não tem meios de firmar a sua autoridade senão no acerto das suas sentenças — discursou em 1915.
De seus 55 anos de vida pública, Ruy Barbosa passou 32 no Senado. Foi recordista de mandatos. Inaugurou o Senado da República, em 1890, e só o deixou em 1923, quando morreu, aos 72 anos de idade. Antes, no Império, havia sido deputado provincial e deputado geral.
Ruy assumiu o papel de professor político não somente no Parlamento. Para alertar a sociedade e tentar reverter os abusos dos governantes, ele também fez uso sistemático do habeas corpus nos tribunais (como advogado) e dos artigos de opinião na imprensa (como jornalista).
O senador não admitia que militares aspirassem à Presidência da República. Em 1909, ele próprio se lançou candidato presidencial só para tentar impedir a vitória do marechal Hermes da Fonseca, o escolhido da elite política. Segundo Ruy, um militar no poder inevitavelmente levaria o país à ditadura, tal como havia feito o marechal Floriano.
— As nações, senhores, não armam os seus exércitos para serem escravizadas por eles. As nações não fazem os seus marechais para que eles venham a ser na paz os caudilhos de facções ambiciosas — afirmou.
Contrapondo-se à candidatura militar, Ruy Barbosa batizou seu projeto presidencial de Campanha Civilista. Ele viajou a várias cidades para apresentar sua plataforma política em comícios e fazer corpo a corpo com eleitores. Foi a primeira vez que um candidato falou diretamente ao povo. Antes os presidenciáveis nem saíam de casa, já que as fraudes eleitorais típicas da Primeira República assegurariam o resultado desejado pela elite.
Em 1919, ele repetiu a atrevida fórmula da Campanha Civilista. A novidade dessa vez foi a inclusão de direitos trabalhistas na sua plataforma de governo. Perdeu para Epitacio Pessôa, o candidato oficial, que havia passado todo o período eleitoral na França. Em 1973, o deputado Ulysses Guimarães se inspiraria em Ruy Barbosa ao lançar-se “anticandidato” à Presidência da República, desafiando a ditadura militar.
Embora tenha sido derrotado em 1909 e 1919, Ruy conseguiu plantar nos brasileiros a semente de uma consciência político-eleitoral que até então não existia.
Defensor intransigente da lei, Ruy Barbosa se contrapunha à pena de morte e à garantia dos direitos humanos apenas a uma parcela da população. Em 1911, ele denunciou no Plenário a ilegalidade do fuzilamento sumário de marinheiros envolvidos na Revolta da Chibata:
— A vida do homem é tão sagrada no miserável, tão sagrada na messalina, tão sagrada no assassino, tão sagrada no parricida como no mais santo dos homens, como no mais venerando senador da República. Pois então essa coisa chamada vida humana, sobre a qual a Constituição estende o pálio da mais sacrossanta das suas declarações, não vale mais do que a vontade instantânea de um ou dois tenentes entregues à sua própria ignorância?
Em diversas ocasiões, Ruy manifestou-se contra a naturalidade com que se aceitava que presidentes praticassem o nepotismo (“tão em voga na situação atual, essa política de filhos, sobrinhos, genros e afilhados”) e escolhessem ministros por mera conveniência política (“por não entender do riscado, o novo ministro dos Negócios Interiores entrou como um vândalo no ensino brasileiro; destruíram-se o ensino secundário e o ensino superior, para se reerguerem já agora não sei quando”).
O estado de sítio foi uma arma política usada com frequência na Primeira República, permitindo que os presidentes prendessem adversários livremente e censurassem os jornais de oposição. Perseguido, o próprio Ruy Barbosa precisou se exilar na Argentina e na Europa e teve seu Jornal do Brasil proibido de circular. Ele discursou em 1914:
— A imprensa não é só uma liberdade individual. É ainda uma grande instituição da ordem política. Sem ela, expira o governo do povo pelo povo, cessa o regime republicano, desaparece a Constituição. Como do ar atmosférico dependem os pulmões, da imprensa depende todo este sistema de freios e contrapesos, de ações e reações, de poderes distribuídos, limitados e fiscalizados em que consiste a existência de uma democracia liberal. Não há publicidade onde a publicidade não é livre, da mesma forma que o ar que se confinou já não é ar, é carbono, é tóxico, é filtro de contaminações, desnutre, envenena, mata. A imprensa tutelada, a imprensa policiada, a imprensa maculada pela censura deixou de ser imprensa, porque deixou de ser válvula da verdade. Órgão por excelência da fiscalização, transformou-se em encobridouro, para ocultar do povo os atos capitais do governo.
De acordo com o cientista político Christian Lynch, da Fundação Casa de Rui Barbosa e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), outras personalidades brasileiras antes do senador baiano haviam pregado a cultura liberal democrática, porém nenhuma delas com alcance e repercussão semelhantes.
— Ruy Barbosa se colocou como pedagogo da opinião da pública, procurando ensinar ao Brasil o apreço por valores como o Estado de Direito e a moralidade na política. E teve sucesso nisso. Ele conseguiu criar uma cultura que foi incorporada à sociedade e permanece viva, incluindo conceitos, ações e formas de discursar e argumentar. É uma cultura política tão forte que muita gente, sem importar a posição ideológica, acaba sendo ruiana mesmo sem ter lido Ruy, de senadores e deputados a intelectuais e ministros do Supremo. Nesse sentido, Ruy Barbosa está mais vivo do que nunca.