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Brasil, país do improviso e da imprevidência

em Especial
segunda-feira, 06 de maio de 2019
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Brasil, país do improviso e da imprevidência

O soldador Erídio Dias costumava dizer que foi salvo pela sorte. Em novembro de 2015, a barragem onde ele trabalhava se rompeu, despejou 62 milhões de metros cúbicos de rejeitos sobre a Bacia do Rio Doce e matou 19 pessoas em Mariana (MG)

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Destruição por rompimento de barragem em 2015 se repetiu em 2019. Fotos: Antonio Cruz/ Agência Brasil

Dante Accioly/Ag. Senado/
Especial Cidadania

Funcionário terceirizado da mineradora Vale S.A., Erídio contava que só escapou da tragédia porque, minutos antes, saiu para almoçar em um local afastado. Há três meses, o colapso de outra barragem da Vale voltou a devastar o interior de Minas Gerais. Uma onda de destruição matou mais de 200 pessoas em Brumadinho. Erídio estava entre elas.

PROJETO temporarioSe a sorte protegeu o soldador em 2015, não foi o azar que o matou em 2019. As tragédias de Mariana e Brumadinho, assim como uma série de outras catástrofes brasileiras, se explicam por uma combinação temerária de descuido na operação, falha na fiscalização e demora na condenação dos culpados. Pesquisador e doutor em gerenciamento de riscos e segurança pelo Departamento de Engenharia Naval da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Gerardo Portela afirma que a improvisação é um traço cultural dos gestores no Brasil, mesmo diante de situações de ameaça iminente.

— A prioridade não é enfrentar o problema e solucioná-lo. Na nossa cultura, falar do risco atrai o acidente ou é um ato que demonstra fraqueza. Na realidade deveria ser o contrário: fraqueza é não enfrentar o risco e não mitigá-lo — diz.
Desastres recentes ocorridos no Brasil confirmam o diagnóstico do pesquisador. Em Mariana, a Polícia Federal e o Ministério Público concluíram que a empresa Samarco e as controladoras Vale e BHP Billiton sabiam do risco de rompimento, mas não agiram. Em Brumadinho, a Polícia Civil descobriu que gerentes da mineradora foram alertados, mas também se omitiram.

A imprevidência é recorrente. Em setembro de 2018, um incêndio destruiu o Museu Nacional do Rio de Janeiro. A Polícia Federal concluiu que a causa do desastre foi um curto-circuito por superaquecimento em um aparelho de ar-condicionado, provavelmente sem manutenção. Em janeiro de 2013, outro incêndio ocorrera na boate Kiss, em Santa Maria (RS) e deixou 242 mortos. O fogo começou depois que o vocalista de uma banda acendeu um sinalizador pirotécnico no palco. Mas a Polícia Civil concluiu que a superlotação, a falta de saídas de emergência e a falha em extintores contribuíram para o grande número de vítimas.

Desastres
Rompimentos de barragens, incêndios, desabamentos de prédios, deslizamentos de encostas, enchentes, naufrágios de embarcações superlotadas. A lista de tragédias no Brasil impressiona não apenas porque são corriqueiras, mas principalmente porque há um arcabouço legal para evitá-las.

O então Ministério da Integração Nacional, hoje Ministério do Desenvolvimento Regional, publicou em 2017 as Noções Básicas em Proteção e Defesa Civil e em Gestão de Riscos, um compêndio que define que nas áreas de risco, por exemplo, cabe à União apoiar o mapeamento das regiões vulneráveis, enquanto os estados identificam os locais perigosos e os municípios promovem a fiscalização. Mas por que isso não acontece com a frequência e a eficiência necessárias? Para o professor da Universidade de Brasília (UnB) Frederico Flósculo o problema não está na legislação, que ele classifica como “mais que suficiente”.

— A política deformou o serviço de fiscalização, deixando-o quase totalmente sob o controle de interesses menores. Mais legislação fará pouca ou nenhuma diferença. Temos que ter para a Defesa Civil o mesmo status dado ao Ministério Público: de independência e defesa do interesse público — diz.

As calamidades acontecem mesmo quando a fiscalização funciona. Em outubro de 2017, a prefeitura do Rio interditou o Centro de Treinamento (CT) do Flamengo depois que o clube foi multado 31 vezes por falta de alvará. Apesar da proibição, o Flamengo reabriu o CT Ninho do Urubu e instalou contêineres para alojar os atletas em uma área com permissão para servir de estacionamento. Em janeiro, um curto-circuito no ar-condicionado matou dez jovens entre 14 e 16 anos.

Para Portela, tais atitudes expõem um vício do gerenciamento de riscos no Brasil: a ausência de valores éticos.

— A tecnologia deve ser usada para salvaguardar a vida, depois o patrimônio. Quando uma sociedade tem valores bem firmados, há uma cultura de segurança forte. No Brasil, nós não temos. Muitos gestores priorizam prazos, metas, interesses políticos e financeiros.

Providências
O Senado analisa pelo menos dez projetos de lei que pretendem evitar ou atenuar a ocorrência de novas tragédias. O PL 635/2019, do senador Lasier Martins (Pode-RS), proíbe a instalação de barragens de alteamento a montante — como as de Mariana e Brumadinho. O texto também impede a ocupação humana perto de represas. Já o PL 926/2019, de Eliziane Gama (Cidadania-MA), obriga as mineradoras a apresentarem plano de emergência, independentemente do grau de risco da barragem.

imagem temporarioPara combate a incêndios, o senador Veneziano Vital do Rêgo (PSB-PB) apresentou o PL 1.152/2019. O texto exige que prédios acima de 30 metros de altura mantenham helipontos nas coberturas, para facilitar o resgate, por helicópteros, de pessoas isoladas pelo fogo. O senador lembra o caso de dois edifícios de São Paulo destruídos por chamas na década de 1970, Andraus e Joelma. O primeiro tinha um heliponto, mas o segundo era coberto por telhado e não por laje, o que inviabilizou o resgate.

— No Andraus pereceram 16 pessoas, enquanto no Joelma foram registradas 187 mortes.

As tragédias costumam endurecer a legislação. Após o incêndio na Boate Kiss, o Congresso aprovou a Lei 13.425, de 2017. O texto criou novas exigências para o licenciamento de edificações, como o uso de materiais não inflamáveis na construção e a utilização de sistemas de aspersão automática para o combate ao fogo.

Devido à tragédia em Mariana, a Comissão de Desenvolvimento Regional (CDR) aprovou em 2018 um relatório sobre a Política Nacional de Segurança de Barragens. O autor do documento, Elmano Férrer (Pode-PI), denunciou a falta de recursos para manutenção e fiscalização dos equipamentos. Das 24 mil barragens do Brasil, 723 apresentam alto risco de acidentes e apenas 3% delas foram vistoriadas em 2017.

Depois de Brumadinho, o Senado instalou uma comissão para investigar o desastre. Diante da urgência do assunto, o relator da CPI, Carlos Viana (PSD-MG), apresentou um projeto (PL 1.396/2019) que obriga o responsável por crime ambiental a ressarcir o poder público pelas despesas com socorro, resgate, assistência e mitigação de danos.

— O desastre de Brumadinho gerou a necessidade de uma enorme mobilização de serviços públicos. Minas Gerais gastou R$ 1 milhão por dia com as operações de resgate de vítimas, localização de corpos e assistência à população. A reparação deve ser completa, incluídos os gastos para assistência às vítimas e para conter os efeitos do dano sobre comunidades atingidas — diz Viana.

Erídio, o soldador soterrado por dejetos em Brumadinho, digitou em suas redes sociais em junho de 2015 frases que deveriam servir de mantra para quem tem a missão de evitar tragédias: “A excelência não é um acidente. Ela é, acima de tudo, um hábito”.