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Brasil não sabe quem são os moradores de rua

em Especial
quinta-feira, 28 de março de 2019
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Brasil não sabe quem são os moradores de rua

É consenso entre estudiosos que crises econômicas graves e prolongadas estimulam o aumento da população sem emprego e moradia disposta a ocupar calçadas, viadutos e praças

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Em 2008, só 11,5% da população de rua recebia algum benefício social. Foto: Rovena Rosa/ABr

Cintia Sasse/Ag. Senado/Especial Cidadania

Especialmente quando há muita gente abaixo da linha da pobreza e as políticas de assistência e promoção social são inexistentes ou falhas. Num país como o Brasil, abatido por crises econômicas e por políticas públicas frágeis, com 12 milhões de desempregados e 54,8 milhões de cidadãos dispondo de R$ 406,00 ou menos mensais, a impressão que se tem é que a chamada população em situação de rua só vem aumentando.

O recurso a avaliações especulativas, com base no que se vê no ambiente urbano e às margens de rodovias, decorre do fato de o IBGE não ter um programa de contagem e classificação dos moradores de rua. Os levantamentos estatísticos desse problema são esporádicos, localizados e obedecem a metodologias distintas entre si, além de pouco consolidadas.

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Na ausência de averiguações, torna-se mais difícil implementar medidas que devolvam esses brasileiros à plena cidadania. É o que defendem, por exemplo, os senadores Paulo Paim (PT-RS) e Flávio Arns (Rede-PR).

Paim menciona um estudo de 2016, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) a partir de dados disponibilizados por 1.924 municípios via Censo do Sistema Único de Assistência Social (Censo Suas), que estimou em cerca de 102 mil pessoas a população de rua em 2016.

— Tem que traçar um perfil claro e oferecer tratamento para muita gente drogada nas ruas, encaminhar as pessoas para serviços sociais, criar programas de habitação, como aquele do aluguel social, capacitar as pessoas com o mínimo de preparação para entrarem no mercado de trabalho.

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Em discurso pronunciado no dia 21 de fevereiro, Arns apontou outra estimativa alarmante do Ipea: apenas 47% da população de rua estava no Cadastro Único de Programas Sociais.

— Para ter uma política pública bem definida, em vez de eu falar unicamente, devemos ouvir profissionais da mais alta qualidade, educadores que inclusive moram junto com o povo de rua, os profissionais de saúde que os atendem e entidades sociais, religiosas ou não, que também se dedicam a isso — disse o senador.

A primeira e única pesquisa ampla sobre a população de rua foi realizada entre 2007 e 2008 pelo antigo Ministério do Desenvolvimento Social, mas não atingiu todo o território nacional. O levantamento avaliou um público composto por pessoas com 18 anos completos ou mais e abrangeu 71 cidades, sendo 48 municípios com mais de 300 mil habitantes e 23 capitais. Foram detectados 31.922 adultos em situação de rua. Somando-se os resultados de pesquisas feitas à parte em São Paulo, Belo Horizonte e Recife, o contingente aumentou para 44.125.

Perfil heterogêneo
Graças a esse estudo, foi possível traçar um perfil heterogêneo da população de rua levando em conta idade, gênero, cor da pele, formação escolar e razões para a vida fora de casa. Constatou-se, entre outros aspectos, que 69,6% deles dormem na rua, 22,1% em albergues e 8,3% alternam entre a rua e os albergues. Quanto à alimentação, 79,6% conseguem fazer pelo menos uma refeição por dia, mas apenas 27,4% compram comida com o próprio dinheiro.

A inclusão da população de rua no censo do IBGE deve ficar para depois de 2020, por dois motivos: o órgão está enfrentando dificuldades orçamentárias até para realizar o censo dos brasileiros domiciliados e os técnicos do instituto ainda quebram a cabeça para chegar a uma metodologia capaz de medir os contornos de um grupo que tem localização incerta, é encontrável mais no período noturno e requer abordagem especializada por equipes treinadas, em razão do número de usuários de entorpecentes e com transtornos mentais. De acordo com a assessoria de imprensa do IBGE, o assunto ainda está sendo debatido tecnicamente, mas o que se desenha, além dos levantamentos que são usuais em moradias coletivas, como os albergues, é o mapeamento das zonas urbanas com a presença da população de rua.

— Nós entendemos a complexidade de se fazer esse censo, e estamos debatendo caminhos com o IBGE, mas o fato é que a população de rua não pode continuar excluída. Uma metodologia tem de ser desenvolvida — diz o secretário-geral de Articulação da Defensoria Pública da União, Renan Vinicius Sotto Mayor de Oliveira.

O decreto 7.053, de 2009, que instituiu a Política Nacional para a População em Situação de Rua e seu Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento, já indicava a importância do mapeamento para implementação de políticas públicas destinadas a essa parcela dos brasileiros. A política é considerada um marco na luta pelos direitos da população de rua por ter estabelecido as diretrizes para garantir direitos, entre os quais a dignidade.

Visibilidade
A melhoria dos levantamentos estatísticos dará visibilidade a pessoas como Leonildo José Monteiro, de 42 anos, que morou por muitos anos nas ruas em cidades de diferentes estados como Paraná, Mato Grosso e São Paulo. Foi viver na rua pela primeira vez quando tinha ainda apenas 10 anos, fugindo do pai violento, e acabou voltando para casa. Estudou e assim que se formou em zootecnia, aos 18 anos, deixou o pequeno município de Aripuanã (MT).

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No Paraná Leonildo dormiu embaixo de marquises, mas desde de 2013 tem sua casa própria graças ao programa habitacional de Curitiba cujo foco é a população vulnerável.

— Quando você tem um CEP você pode arrumar um emprego, acessar a saúde. Quando você não tem uma moradia, um comprovante de endereço, barram você em muitos lugares, as portas se fecham. As pessoas nem dão emprego se você está dentro do albergue. Existe muito preconceito — ressaltou.

Um dos aspectos vitais das políticas almejadas é a proteção a um grupo social que vive à mercê de todo o tipo de violência. No ano passado, o Disque 100, o aplicativo Proteja Brasil e a Ouvidoria do então Ministério dos Direitos Humanos contabilizaram aproximadamente 900 denúncias, com destaque para negligência e violência psicológica, institucional e física.

Envenenamento

Durante seminário realizado no ano passado em Brasília pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos, a representante da Pastoral Nacional do Povo da Rua, Cristina Bove, relembrou o caso de horror vivido em 2011 por oito moradores de Belo Horizonte envenenados com chumbinho numa tentativa de homicídio mal sucedida, mas cujos autores jamais foram descobertos.

Para suprir as falhas da política estabelecida pelo decreto em 2009, tramitam no Congresso projetos como o PL 6.802/2006, de Paim, que prevê a substituição do arcabouço legal do decreto por um programa abrangente de inclusão social com medidas assistenciais e oportunidades de qualificação profissional, financiado pelo Fundo de Combate à Pobreza. O texto, que autoriza o Executivo a implementar a política, está na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara.

Paim também é relator, na Comissão de Assuntos Sociais (CAS), do PLS 328/2015, do senador Telmário Mota (Pros-RR), que regulamenta a profissão de educador social para atuar diretamente no resgate da população de rua e de pessoas vulneráveis. E o PLC 130/2017, do deputado Paulo Teixeira (PT-SP), reserva 2% das vagas em obras e serviços a trabalhadores em situação de rua. O projeto tramita na CCJ do Senado.