Professor da USP conta suas memórias da época do AI-5
Nos anos 60, Marco Antonio Barbieri viveu entre o estudo da medicina, o amor à arte e o medo da ditadura
Imagem: jornal.usp.br Fotomontagem com jornais da época do AI-5, incluindo notícia, em dezembro de 1969, do julgamento de acusados de participação em organização terrorista, entre eles o então estudante de Medicina da USP Marco Antonio Barbieri, que foi absolvido. |
Rose Talamone/Jornal da USP
O Ato Institucional número 5, de 13 de dezembro de 1968, que transformou em lei a retirada da liberdade política e da garantias constitucionais, “foi o desfecho de um movimento que começou muito antes, em 1964”, conta o professor aposentado da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP Marco Antonio Barbieri, preso e torturado em novembro de 1969.
Hoje titular do Departamento de Pediatria da FMRP, Barbieri entrou na faculdade em 1960 e se formou em 1967. Sempre dividido entre a medicina, a música, o teatro e o cinema, com seu colega de FMRP Sérgio Arouca – que chegou a candidato à Vice-Presidência da República em 1989 –, foi membro do Partido Comunista e ajudou a criar a ordem dos “médicos-poetas”. Esse grupo contava ainda com outros colegas médicos: Geraldo da Costa e Silva, Luís Carlos Mantovani e Carlos Normanha.
O professor lembra que, a partir de 1961, algumas células – de um lado, a igreja; de outro, o Partido Comunista – começaram a se organizar politicamente. Enquanto isso, os “médicos-poetas” cumpriam seu papel de médicos e militantes políticos, mas com a “alma entregue à arte”. Em pleno janeiro de 1964, ainda conseguiam ocupar suas noites “fazendo serenatas”..
Embalados pelo sonho de liberdade e criatividade
Esse clima de liberdade, criatividade e até de ingenuidade tomava conta dos jovens da época e fez com que eles não percebessem o que estava acontecendo no País. “Não existia televisão e os acontecimentos eram noticiados pelo rádio. Já os jornais, num primeiro momento, apoiaram o golpe, mas, quando perceberam, recuaram. Os que não apoiaram foram fechados, como o Jornal do Brasil”, lembra Barbieri.
Em Ribeirão Preto, por exemplo, os efeitos da passeata “Deus pela liberdade”, no Rio de Janeiro (Marcha da Família com Deus pela Liberdade foi o nome comum de uma série de manifestações públicas ocorridas entre 19 de março e 8 de junho de 1964 no Brasil), e do golpe de 1º de abril, que depôs o presidente João Goulart, não foram sentidos. “Pensamos que fosse uma reforma política, trabalhista, mas já naquele ano alguns foram presos e nos orientaram (os estudantes) a sumir.”
O discurso era de que tudo estava sendo feito pela pátria, pela família, pela liberdade e que eleições seriam convocadas, mas não foram. Em 1965, Barbieri e seus amigos organizaram um movimento estudantil para iniciar o enfrentamento ao “sistema”. “Nosso grupo defendia que esse enfrentamento não fosse com armas, mas pelo caminho democrático do diálogo.”.
Imagem: Arquivo pessoal O professor Marco Antonio Barbieri: de preso e torturado em 1969 a pioneiro nos estudos |
Em 1966, aconteceu o primeiro grande choque entre o grupo de estudantes de Ribeirão Preto e o “sistema”. “Fomos reprimidos numa passeata de rua e a Praça XV, no centro da cidade, virou uma praça de guerra.” Segundo o professor, prenderam as lideranças do movimento, inclusive o presidente do Centro Acadêmico da FMRP, Carlos Normanha, que em 1962, ainda no ensino médio, havia assinado o pedido de criação do Partido Comunista. O fato deixou claro que os militares vinham se organizando há bastante tempo.
A soltura do colega Normanha, os estudantes da FMRP conseguiram graças à força política do superintendente do Hospital das Clínicas na época, Paulo Gomes Romeo. Mas o choque de realidade foi inevitável. Eles sentiram na pele que “os movimentos estudantis estavam em transição para ficar contra a ditadura” e, ao mesmo tempo, que “o interior de São Paulo entrava definitivamente na luta pela liberdade e pela democracia”, mas era totalmente diferente do que imaginavam..
O movimento estudantil e operário de Ribeirão Preto tem história e protagonismo contra a ditadura. Começou nos anos 40, com um movimento operário que fechou lojas, e se consolidou em 1961, com a queda de Jânio Quadros e a defesa da democracia pelo Centro Acadêmico da FMRP, mas ainda assim envolto em “romantismo e ingenuidade”.
Os Atos Institucionais, a partir de 1966, fecharam os centros acadêmicos. Foram proibidos de funcionar, passaram a ser denominados diretórios e ficaram vinculados diretamente ao Ministério da Educação. Mas os líderes estudantis da FMRP não cederam e, como aconteceu em todo o País, os “centros acadêmicos” precisavam de mais ajuda financeira para se manter. É nesse contexto, avalia Barbieri, que surge “outro problema cultural dos nossos grupos progressistas”: as pessoas começam a se dividir, a formar grupos e subgrupos. O Partido Comunista começou a se dividir em 1962. Em 1968, no Congresso de Ibiúna (SP), várias pessoas foram presas e a União Nacional dos Estudantes (UNE) entrou na ilegalidade. Nessa época, eu já não estava mais na Universidade. Várias pessoas foram presas, inclusive em Ribeirão Preto”..
Ingenuidade atropelada por prisão e tortura
“Em 1964 eu não era ligado a nada”, conta o professor sobre as circunstâncias que antecederam o episódio de sua prisão. “O Arouca era ligado a partidos políticos. Mas fomos detidos porque um policial jogou um pacotinho. Fomos presos, eu e o Arouca, por porte de maconha. Nem fumávamos.”
Barbieri diz que era tamanha a ingenuidade que, mesmo com um um periódico de líderes religiosos noticiando que “líderes estudantis comunistas foram presos com maconha”, “não percebemos o que estava acontecendo”. Os estudantes queriam, segundo o professor, “apenas brincar e viver; eram músicos e teatrólogos”. E, afinal de contas, nenhum jornal noticiou o ocorrido na cidade, apenas o “jornal dos padres”. Todos foram liberados após as manifestações.
Com o Ato Institucional Número 5 (AI-5), em 1968, nada mais se ouve sobre prisões em Ribeirão Preto. No dia 13 de dezembro de 1968, “fecha tudo e entra o grande escuro”. Em 1969, o processo de censura se instala. Os grandes jornais, que num primeiro momento se mantiveram favoráveis ao movimento, em 1968 entenderam o que de fato acontecia e tentaram agir, mas foram ameaçados de fechamento (Folha de São Paulo e O Globo, o Estadão publicava poesias de Camões no local dos textos censurados). Correio da Manhã e Jornal do Brasil, no Rio de Janeiro, “não apoiaram e foram fechados”.
Imagem:Arquivo pessoal Centro Acadêmico Rocha Lima da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP foi atuante tanto politica como culturalmente. No início dos anos 60, recebeu Vinícius de Moraes (ao microfone). Na foto acima, o poeta está na Rádio PRA-7 de Ribeirão Preto, com membros do Centro Acadêmico Rocha Lima, entre eles Marco Barbieri (centro) |
Assim, em 1968, o grupo de estudantes da FMRP se dividiu. Barbieri diz que alguns queriam luta armada e outros apenas o enfrentamento de ideias. “Ficamos na retaguarda e muita gente sumiu. Não sabíamos se foram presos ou mortos.” Em 1969, a situação começou a piorar no campus de Ribeirão Preto. É que todas as universidades deveriam ter “um militar olhando o chefe da instituição”. Barbieri lembra que, em 1966, os militares no poder “intensificaram convites para professores universitários realizarem cursos da Escola Superior de Guerra. Era uma preparação para essas pessoas atuarem como infiltradas na Universidade”.
Para Barbieri, a ingenuidade com relação ao poder político dos militares mais uma vez imperou entre os estudantes de Ribeirão Preto. Os famosos embates de 1968 também se reproduziram na cidade, com passeatas pela democracia. Mas, ao contrário do que imaginavam, a força da Polícia em favor dos militares estava atenta e, em outubro de 1969, “o grupo do Fleury (Sérgio Fernando Paranhos Fleury, delegado do Departamento de Ordem Política e Social, o Dops, de São Paulo) veio para Ribeirão. Começam a sumir nossos amigos e, no dia 7 de novembro de 1969, fui preso”.
“Invadiram minha casa; meu filho estava doente e minha esposa ficou sozinha”, lembra o ex-aluno da FMRP. Disse que começou a apanhar logo após confirmar sua identidade. Os espancamentos lhe custaram um dos tímpanos. Relata ter passado por acareação sob tortura com outras duas pessoas. Marighella (Carlos Marighella, um dos líderes da luta contra a ditadura brasileira) acabava de ter sido morto e “estavam atrás do outro líder, o Joaquim Câmara Ferreira”, que, segundo os policiais, estava na residência de Barbieri.
Depois de ser confrontado com seu “suposto delator que também estava lá apanhando”, foi liberado para casa, com orientação de “não abrir a boca” e justificar as lesões como resultado de queda de uma escada. A visita ao consultório de um colega médico, no dia seguinte, constatou um tímpano rompido, que o próprio médico registrou na ficha de atendimento ter sido causado por queda.
Em janeiro de 1970, Barbieri foi preso novamente, com Carlos Normanha (seu colega de FMRP) e um outro funcionário da Prefeitura Municipal de Ribeirão Preto. Dessa vez, segundo ele, não apanhou, mas foi encaminhado para o Departamento Estadual de Ordem Política e Social, Deops, de São Paulo, na capital. A delatora teria sido a secretária do departamento onde atuava.
No trajeto até São Paulo, a orientação era de que, “ao pararmos no posto, não seríamos algemados e sim que estávamos levando um preso perigoso (o funcionário da Prefeitura, que era negro). Barbieri conta que ele e seu colega Normanha não aceitaram as ordens e avisaram que “ou desciam todos ou nenhum”. Sugeriram que todos descessem sem o cinto, para uma das mãos segurar as calças.
No final, “desceram todos e de cinta”. Passaram três dias no Deops e outros quase 40 no Presídio Tiradentes. “Respondemos em liberdade. Podíamos trabalhar, mas não sair da cidade. Tinha que me apresentar toda semana à delegacia. Quem escapasse dos olhos deles morria. Alguns conseguiram fugir e os encontrei, mais tarde, na França. Zeferino Vaz, na Unicamp, de certa forma protegeu seus professores, dizendo aos generais: ‘Dos meus comunistas, cuido eu’. Mas na FMRP foram vários.”
Conseguiu autorização para trabalhar na França, atendendo convite de um instituto de pesquisa do governo francês, cujos recursos viriam direto para o Ministério da Saúde brasileiro. Mas ainda assim enfrentou mais dificuldades na liberação dos passaportes. Sua esposa pode acompanhá-lo, mas foi obrigado a deixar seu filho no Brasil. Enfim, ao retornar ao País, pôde continuar as pesquisas iniciadas na França e se tornar pioneiro no desenvolvimento de estudos de coortes de recém-nascidos e acompanhá-los durante décadas para avaliar especialmente os impactos da prematuridade no desenvolvimento do indivíduo.